Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 2 — Texto 19. Sraffa e o Contexto Teórico (1/2). Por Giorgio Lunghini

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 2 – De Sraffa à necessidade de romper com o pensamento económico dominante. As grandes questões da macroeconomia

 

Nota de editor: devido à extensão e nível de abstração deste texto, o mesmo será publicado em duas partes. Hoje a primeira.

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

13 min de leitura

Texto 19 – Sraffa e o Contexto Teórico (1/2)

 Por Giorgio Lunghini

Publicado em Economia Politica, Janeiro de 2005, ver   aqui.

ACCADEMIA NAZIONALE DEI LINCEI

Convegno internazionale – PIERO SRAFFA

11-12 de fevereiro de 2003

 

É terrível contemplar o enormíssimo abismo de incompreensão que se abriu entre nós e os economistas clássicos.

Piero Sraffa [1]

 

Este texto, intitulado Sraffa e o contexto (o contexto teórico, quero dizer) é também e sobretudo dirigido aos não-economistas. Parece-me que a Accademia dei Lincei é o lugar ideal para mostrar aos colegas que cultivam outras disciplinas os problemas que nelas encontram, especialmente quando são de ordem epistemológica e sobre a história da ciência. Portanto, tentarei traçar um mapa, necessariamente sumário, do território teórico que Piero Sraffa atravessou no século passado e com base no qual ele construiu, em 1960, um outro monumento do pensamento crítico do século XX: Produção de Mercadorias através de Mercadorias (o primeiro foi a Teoria Geral de 1936 de J. M. Keynes) [2]. Assim como para O Capital de K. Marx, o verdadeiro título de Produção de Mercadorias através de Mercadorias é o seu subtítulo: em Marx é Crítica da Economia Política; em Sraffa é Premissas para uma Crítica da Teoria Económica. Qual é a teoria económica que Sraffa critica?

Como Claudio Napoleoni observou na sua recensão muito rápida de Produção de Mercadorias,

“a real relevância do trabalho de Sraffa corre o risco de permanecer incompreensível se não for possível situá-lo com absoluta precisão no contexto da história das teorias económicas, e isto só pode ser feito na medida em que for possível verificar duas sugestões do próprio Sraffa, de acordo com o qual a sua tentativa, por um lado, é elaborar uma crítica da ‘teoria moderna’ ou ‘teoria marginalista’ e, por outro, contribuir para o renascimento da teoria clássica”[3].

Portanto, adianto uma tese: Sraffa propõe-se alterar a teoria clássica de modo a torná-la uma base inatacável de uma crítica da teoria moderna; uma crítica que, portanto, permitiria apresentar a teoria clássica renovada como a única analiticamente rigorosa do valor e da repartição. Talvez em nenhuma outra disciplina seja possível que velhas teorias, submersas e esquecidas, sejam propostas como mais poderosas e sólidas do que as modernas.

O contexto da reflexão teórico-crítica de Sraffa é, muito simplesmente, toda a história da teoria económica mais elaborada, isto é, a história das teorias do valor e da repartição. Poucas obras de teoria económica estão tão profundamente enraizadas na história da teoria e por ela alimentadas exceto talvez apenas O Capital e a Teoria Geral. Essa intenção da abordagem histórico-crítica emerge muito claramente também nas dicas parcimoniosas distribuídas ao longo das XIII + 127 páginas de Produção de Mercadorias.

No Prefácio, Sraffa nomeia “os economistas clássicos de Adam Smith a Ricardo” (cujo ponto de vista “foi afogado e esquecido após o advento da teoria ‘marginalista’); P. H. Wicksteed (“o purista da teoria marginalista”); e Lord Keynes (que em 1928 leu um rascunho das proposições com que abre a obra Produção de Mercadorias [4]. Na nota sobre as suas fontes, os autores citados são Quesnay (a quem devemos a primeira apresentação, no Tableau Économique, do sistema de produção e consumo como um processo circular “em forte contraste com a imagem oferecida pela teoria moderna de uma trajetória unidirecional, dos ‘fatores de produção’ aos ‘bens de consumo'”); Ricardo (sobre a determinação da taxa de lucro); Marx (sobre o conceito de excedente e a ideia de uma ‘taxa máxima de lucro’); novamente Smith (pelo seu conceito de ‘poder de compra sobre o trabalho’, uma medida geral do valor em que é “surpreendente” estar a abordar a ‘mercadoria padrão’ de Sraffa); Torrens (sobre as complicações decorrentes do uso de ativos fixos em várias proporções); e, finalmente, Malthus (sempre ele a este respeito). No texto de Produção de Mercadorias Sraffa é ainda mais parco parque: o único nome adicional referido é o de A. Marshall. Há nove autores no total, mas muitos deles são suficientes para evocar toda a história da teoria económica, desde o seu nascimento como “economia política” até à sua redução ao “económico”.

No entanto, para entender o trabalho de Sraffa e de acordo com o propósito do próprio Sraffa para o enquadramento do livro, a história deve ser lida ao contrário:

O único método necessário é ler a história da frente para trás, ou seja: começar pelo estado atual da economia, como é que surgiu, mostrando a diferença e a superioridade das velhas teorias. Depois, apresentar a teoria. […] O meu propósito é expor a história, expor o que é realmente o essencial. Isto é, para me fazer entender: para isso devo ir do conhecido ao desconhecido, de Marshall a Marx, da desutilidade ao custo material [ 5].

Esta é uma estratégia epistemologicamente invulgar em economia e, especialmente, noutras disciplinas, mas neste caso é a mais eficaz.

 

O cânone sraffiano

Não entro aqui numa discussão quanto ao mérito de uma questão que será debatida nesta Convenção, Sraffa e a matemática. Gostaria de mencionar um ponto que me parece relevante: o cânone metodológico ao qual Sraffa adere é o da exatidão, da precisão. Escreveu Sraffa:

Há que sublinhar a distinção entre dois tipos de medição. Por um lado, as medidas que interessam principalmente aos estatísticos. Por outro, as que interessam à teoria. As medições dos estatísticos são apenas aproximadas e fornecem uma base adequada para resolver problemas de números índices. As medições teóricas exigem uma precisão absoluta. Qualquer imperfeição nestas medições teóricas não só perturba, como destrói toda a base teórica”[6].

E ainda: “o que eu chamei de ‘mercadoria padrão’ e que tem sido tão pouco considerada, é proposta como um método para resolver este problema [de uma medida invariável do valor] exatamente e não aproximadamente” [7]. Finalmente, uma opinião e um testemunho do Professor Steve:

Apesar de Sraffa nunca ter negado as tentativas de retirar desenvolvimentos construtivos da Produção de Mercadorias, creio que este livro nasceu com a intenção de elaborar uma crítica. E que, se o entendermos neste sentido, ele ajuda a resolver a aparente dissociação no pensamento de Sraffa entre a ideia de que a teoria deve ter uma estrutura lógica estanque e a perceção de que a realidade económica é tal que só pode ser compreendida de forma grosseira. […] Acrescento que Sraffa tentou interessar o seu grande amigo Blackett, Prémio Nobel e presidente da Royal Society, pelos problemas da medição do capital. Mas Blackett não se quis envolver no assunto, dizendo que se estavam a fazer coisas muito mais grosseiras na física do que as que Sraffa denunciava na teoria do capital. O facto de Sraffa não ter aceitado a posição de Blackett não pode certamente significar que ele acreditava que se podia esperar maior rigor na economia do que na física. Mas pode ser explicado se os objetivos de Sraffa fossem meramente de produzir uma crítica [8].

O que me parece é que tudo é de grande relevância para nós, mesmo para efeitos de uma análise sobre a utilização da matemática em economia, questão esta sobre a qual F. Y. Edgeworth, precisamente um dos protagonistas da redução da Economia Política a uma ciência pseudo-natural cujo rigor deve ser certificado pela escolha exclusiva da forma matemática, escreveu muito sabiamente. Edgeworth é o autor circunspeto da entrada Mathematical method in political economy na Palgrave vitoriano [9]. Essa breve entrada começa com uma advertência: “A ideia de aplicar a matemática aos assuntos humanos pode parecer, à primeira vista, um absurdo digno da Laputt de Swift”. Para ser compreendido pelos leitores, recordo a narrativa de Gulliver:

Aqueles a quem o rei me tinha confiado, tendo-se apercebido da minha falta de roupa, enviaram na manhã seguinte um alfaiate para me tirar as medidas para um fato completo. Este artesão tratou o assunto de forma muito diferente dos seus colegas europeus: mediu a minha altura com um quadrante e, depois, com régua e compasso, marcou no papel as dimensões e os traços do meu corpo; seis dias depois, trouxe-me um fato mal feito e que não me servia de todo porque nos seus cálculos se tinha enganado num valor. […] A imaginação, a fantasia e a inventividade são totalmente negadas aos Laputianos: a sua língua nem sequer tem palavras para estes conceitos; o círculo dos seus pensamentos e intelecto limita-se à matemática e à astronomia [10].

No entanto, segundo Edgeworth, a utilização da matemática em Economia pode contribuir para essa utilização negativa ou dialética da teoria que consiste em enfrentar os argumentos erróneos no seu próprio terreno de raciocínio abstrato: “O método matemático é útil para eliminar o lixo que entulha os fundamentos da ciência económica. O método matemático pode, portanto, ser de grande utilidade, mas não se deve esquecer os abusos e os defeitos a que está exposto:

Um deles é o risco de ser sobrestimado, um risco comum a qualquer organismo e especialmente aos novos. Como diz o professor Marshall: “Se as condições reais de um determinado problema não forem estudadas, este conhecimento [matemático] vale pouco mais do que uma broca de petróleo onde não existem campos de petróleo”.

 

A Teoria Moderna

A teoria moderna (neoclássica ou marginalista, embora os termos não sejam sinónimos) nasceu na década de 1870 e seguintes, coincidindo, curiosamente, com o início da Grande Depressão [11], nasceu com os trabalhos de Jevons, Wicksteed, Edgeworth e Marshall (cuja inclusão neste grupo não é assim tão simples) em Inglaterra; Menger e Böhm-Bawerk na Áustria; Walras e Pareto na Suíça; Fisher na América; e Wicksell na Suécia [12].

A revolução marginalista tem duas características fundamentais: uma de fundo e outra de método. A primeira consiste na afirmação de uma teoria do valor-utilidade (que pressupõe que o objetivo da produção é a produção de valores de uso, a satisfação das necessidades dos consumidores), em vez da teoria do valor-trabalho (que, pelo contrário, pressupõe que o objetivo da produção é a obtenção de valores de troca, com vista à realização de lucro). A segunda caraterística, intimamente relacionada e explicada pela influência da mecânica racional e do positivismo, é a adoção do cálculo infinitesimal como modelo epistemológico. O carácter científico ou não científico de um argumento económico passa a depender da sua formulação matemática e a consequente redução da teoria do valor a um mero problema de cálculo. Ao mesmo tempo, enquanto na economia política clássica o objeto de análise eram as relações entre as classes sociais, o objeto elementar e o ponto de partida da análise económica moderna é o indivíduo com os seus gostos e necessidades. O homo œconomicus, animado por um critério abstrato de ganho que estaria enraizado na natureza humana e que se move num campo de forças determinado pelas ações de outros indivíduos e pelos constrangimentos a que está sujeito até o sistema atingir um equilíbrio estático.

Com o advento da escola neoclássica, a Economia Política transforma-se numa disciplina que tem explicitamente muito pouco de “política”[13]. De investigação das causas da riqueza das nações e das leis que regem a sua distribuição entre as classes, a Economia passa a ser, segundo a definição dada por L. Robbins nos anos 30, “a ciência que estuda o comportamento humano como a relação entre fins e meios escassos com usos alternativos”[14]. A Economia pode finalmente ser considerada uma ciência física, uma ciência, como a mecânica, simultaneamente experimental e racional. O objeto de estudo já não é o papel do trabalho na produção, repartição e utilização do excedente, mas a escassez dos recursos.

Em suma, a relação capitalista já não é o problema, mas é um dado adquirido: é um pressuposto. Com esta redução a uma ciência pseudo-natural, a uma ciência das coisas e dos objetos, o discurso económico renuncia a emitir juízos sobre o modo como a atividade económica se desenrola nos diferentes sistemas históricos e como se configuram as relações entre os seus sujeitos coletivos.

A moderna teoria do valor desenvolveu-se em duas versões distintas: a teoria walrasiana do equilíbrio geral e a teoria marshalliana do equilíbrio parcial. Comum a ambas as abordagens teóricas, no entanto, é tanto o princípio do individualismo metodológico quanto a ideia de maximizar a utilidade como a base da ação dos indivíduos no mercado. Não me debruçarei sobre a estrutura analítica das duas abordagens e limitar-me-ei a observar que, na teoria moderna (ao contrário dos economistas clássicos), o capital é concebido não como uma relação social, mas exclusivamente na sua conotação material: como um conjunto de meios de produção produzidos e dotados de produtividade; e que neles as mercadorias não são produzidas por meio de outros bens, mas por meio de serviços que produzem bens de capital tomados como dados.

Tal abordagem tem um efeito de grande importância na visão do processo económico. A consequência é que, se o trabalho não é a única fonte de valor, mas há também outros ‘fatores’ de produção, então a categoria de excedente desaparece, uma vez que este assenta no pressuposto que é o trabalho produtivo (força de trabalho, para Marx) a produzir mais do que é necessário para a sua reprodução [daí a noção de excedente]; e a conceção do problema distributivo é afirmada como governada pela harmonia entre as classes e não pelo conflito entre classes antagónicas. Se considerarmos cada quota de distribuição como resultado de uma contribuição produtiva específica de cada fator, a repartição do produto social deixa de ser determinada também pelo conflito de classes, mas apenas pelas condições técnicas de produção que são assumidas como dadas. O mundo é governado por uma lei económica única e determinada; e há uma única configuração de equilíbrio que, na ausência de atrito, é afirmada naturalmente e com o máximo benefício para todos.

Esta visão da economia e a teoria correspondente do valor-utilidade, tornaram-se predominantes e são encontradas quase inalteradas no pensamento económico contemporâneo. A teoria dominante ainda é hoje aquela Grande Teoria ou Grande Sistema da ciência económica, da qual G. L. S. Shackle fala no seu livro Os Anos da Grande Teoria [15]. Uma teoria que é apresentada como completa e autossuficiente, cujo único objetivo é demonstrar as implicações lógicas de gostos ou necessidades dadas, em condições de informação perfeita e recursos escassos. A escassez de recursos e o perfeito conhecimento da satisfação que pode ser obtida com a utilização desses recursos através da tecnologia disponível garantiriam que os recursos fossem sempre todos utilizados e sempre no seu melhor fim. Esta é, na sua aplicação, a teoria de um equilíbrio geral atemporal, perfeitamente competitivo, do pleno emprego. Uma vez que o ‘problema da soma’ das quotas da repartição entre os vários fatores fica resolvido quando estas são proporcionais à sua produtividade marginal, a Grande Teoria também garante que não haja conflito distributivo. O mundo, finalmente, estará em harmonia (com uma consequência óbvia para a política económica: laissez faire!).

Das implicações e premissas desta Grande Teoria fará justiça Keynes com a Teoria Geral e Sraffa com a Produção de Mercadorias. Estas são de facto as duas críticas fundamentais contra o pensamento ortodoxo: a de Keynes, argumentando, com utilização de linguagem comum, sobre a teoria da moeda, do rendimento e do emprego; e a de Sraffa, matematicamente comprovada, sobre a teoria do valor, do capital e da repartição.

 

A teoria clássica

Chego à teoria clássica, cujo “ponto de vista” Sraffa propõe que seja retomado. Em vez de representar o sistema de produção e consumo como “um trajeto num só sentido que vai dos ‘fatores de produção’ aos bens de consumo'”, a teoria clássica representa o sistema de produção e consumo como um processo circular. Essa representação tem um significado profundo pois capta a transformação do processo económico-social que ocorreu com o advento do capitalismo como forma de organização da ‘sociedade civil’ hegeliana, ou seja, do complexo das relações materiais da existência. No sistema feudal, o desempenho do trabalho e a apropriação e destino do excedente têm uma determinação extraeconómica. O processo é, por assim dizer, linear e a atividade económica é um momento, um segmento, do processo de reprodução social. No capitalismo, no entanto, tudo está sujeito à determinação económica e, assim, enquanto no sistema feudal tudo é submetido à produção de valores de uso e ao consumo senhorial, com o capitalismo o processo económico torna-se um fim em si mesmo, autónomo: um processo circular de produção e reprodução do excedente na forma de lucro, um processo de produção de mercadorias através de mercadorias, de dinheiro por meio de dinheiro [16]. Não é por acaso que é somente nesta situação que a Economia Política adquire possibilidades e sentido como uma ciência autónoma e sistemática do capitalismo.

Na era clássica da Economia Política (que vai de Petty a Ricardo) o conceito central é o de excedente, ou seja, o que resta do produto social, líquido do consumo necessário para a subsistência dos trabalhadores e a reintegração dos meios de produção [17]. Para os fisiocratas, o produto líquido assume a forma de renda e é ‘um puro dom da natureza’. Para os economistas ingleses clássicos, o excedente assume a forma de lucro (assim como a renda) e a sua origem é o trabalho que constitui, para usar um termo moderno, o único ‘fator’ de produção: “O trabalho desenvolvido durante um ano é o fundo do qual cada nação finalmente tira todas as coisas necessárias e confortáveis da vida” [18]. A análise do processo de produção-reprodução está, portanto, intimamente interligado com a análise da repartição do produto social entre as três classes da sociedade: os rentistas, os capitalistas e os trabalhadores. A determinação das leis que regem essa repartição torna-se, de facto, com Ricardo, o problema fundamental da Economia Política. Se se considerar que a subsistência dos trabalhadores é determinada pelas circunstâncias históricas e sociais, bem como pelas necessidades fisiológicas, ter-se-á que a parte do produto social do qual os rentistas e capitalistas se apropriam tem um caráter residual e não corresponde às suas ‘contribuições produtivas’. Além disso, a taxa de lucro depende não apenas das condições técnicas de produção (como consta da teoria moderna) mas, também, e numa relação inversa, da taxa salarial. Entre salários e lucros, entre trabalhadores e capitalistas (mas também entre estes e os rentistas) há, portanto, conflitos e não harmonia. Obviamente, tudo isto tem a ver com a teoria do valor-trabalho de que esta análise é o fundamento.

Num mundo em que apenas uma mercadoria é produzida (o ‘trigo’ do ensaio de Ricardo de 1815) o problema do valor e dos preços, da unidade de medida, obviamente não existe. Uma teoria dos preços é indispensável se considerarmos mais bens, tal como Ricardo fez nos Princípios [19]. Com o propósito de determinar a taxa de lucro, Ricardo, contra Smith, adota aqui uma teoria do valor-trabalho incorporado (em vez de uma teoria do trabalho comandado ou uma teoria ‘aditiva’), segundo a qual os preços relativos das mercadorias são determinados pelo tempo de trabalho necessário para as produzir. Estes preços, no entanto, devem ser independentes da taxa de lucro pois, caso contrário, o raciocínio seria circular. Em geral, não é este o caso: se a quantidade de capital necessária para produzir os diferentes bens, para o mesmo trabalho incorporado, é diferente de mercadoria para mercadoria ou se o tempo necessário para as produzir é diferente, então a hipótese de uma taxa de lucro uniforme nas diferentes indústrias depende dos preços relativos dos bens e não apenas do trabalho nelas incorporado mas, também, da mesma taxa de lucro. Ricardo estava ciente disso e contorna o problema assumindo que a quantidade de capital utilizado nas diferentes indústrias é aproximadamente a mesma (e neste caso a teoria do valor-trabalho ainda garantiria uma boa aproximação [20]); ou postulando a existência de alguma mercadoria cuja produção implique um rácio entre capital e trabalho igual à média para que o seu preço não se altere com a variação da repartição. Essa mercadoria, se existisse, representaria uma ‘medida invariável de valor’; no entanto “é dificilmente provável”, como Sraffa escreveu, “que se possa encontrar uma mercadoria que em si mesma também possua aproximadamente as qualidades necessárias”.

O mesmo problema será abordado por Marx, que o define no terceiro livro do Capital (Sétima Secção: Rendimentos e as suas Fontes, quinquagésimo capítulo: A aparência da concorrência):

“Vimos que um aumento ou uma queda geral dos salários, fazendo com que, se tudo o resto permanecer constante, se verifique um movimento na direção oposta da taxa geral de lucro, altera os preços de produção dos diferentes bens fazendo aumentar uns e diminuir outros de acordo com a composição média do capital nas esferas produtivas em questão. Mas, em qualquer caso, em algumas destas esferas, a experiência mostra que o preço médio de uma mercadoria aumenta ou diminui porque o salário aumentou ou diminuiu. Mas o que a ‘experiência’ não mostra é que essas modificações são reguladas secretamente pelo valor dos bens, que não depende dos salários. Se, por outro lado, o aumento salarial for localizado, se ocorrer apenas em esferas específicas de produção como resultado de circunstâncias especiais, pode ocorrer um aumento nominal correspondente do preço desses bens. Este aumento do valor de um tipo de bens relativamente aos outros em que o salário não mudou, não é senão uma reação contra a perturbação local da repartição uniforme da mais-valia entre as diferentes esferas de produção, o que induz o nivelamento das taxas de lucro particulares numa taxa geral. E o resultado desta ‘experiência’ é, novamente, consequência da determinação do preço pelo salário. Essa mesma experiência mostra então, em ambos os casos, que o salário determinou o preço dos bens. O que não mostra, é a causa secreta desta correlação”.

Este problema será retomado por Dmitriev e por outros, direi eu, e, finalmente, por Sraffa que revelará o ‘segredo’ (“O segredo do movimento dos preços relativos que acompanha uma mudança nos salários reside na desigualdade das proporções em que o trabalho e os meios de produção são utilizados nas várias indústrias”) e proporá a “construção puramente auxiliar” da ‘mercadoria padrão’ “como um método para resolver o problema com rigor em vez de por aproximação”. Deste ponto de vista, sobre as relações entre a Produção de Mercadorias e O Capital, talvez se possa dizer que a Produção de Mercadorias é uma glosa ricardiana do Capital acerca da relação entre o movimento dos preços relativos e a variação dos salários [21].

 

(continua)

 


Notas

[1] Citado de Giancarlo De Vivo, Produzione di merci a mezzo di merci: note sul percorso intellettuale di Sraffa, em M. Pivetti (dir.), “Piero Sraffa. Contributi per una biografia intellettuale”, Carocci, Roma 2000.

[2] P. Sraffa, Produzione di merci a mezzo di merci. Premesse a una critica della teoria economica, Einaudi, Torino 1960.

[3] C. Napoleoni, Sulla teoria della produzione come processo circolare, “Giornale degli Economisti e Annali di Economia”, janeiro-fevereiro de  1961

[4] Sempre no Prefácio, Sraffa nomeia e agradece a F. Ramsey, A. Watson e, em particular, a A. S. Besicovitch, por o terem ajudado na matemática. Por fim, e sobretudo, agradece ao amigo Raffaele Mattioli.

[5] Ver G. de Vivo, cit. P. Ciocca lembrou-me a grande importância, na cultura académica anglo-saxónica, de F.W. Maitland (F.W. Maitland, com F. Pollock, The History of English Law before the Time of Edward I, Cambridge University Press, Cambridge 1895): “foi nesta Cambridge que J. M. Keynes e, mais tarde, em parte, também P. Sraffa, se confrontaram com a história” (ver a introdução de P. Ciocca a Le vie della storia nell’economia, il Mulino, Bolonha 2003). Maitland recomendou aos historiadores. Eu trabalho sobre ” Marwick da frente para trás”, The Nature of History, Macmillan, Londres 1970).).

[6] Intervenção de P. Sraffa no Convénio de Corfu da International Economic Association sobre a Teoria do Capital, em F. A. Lutz e D. C. Hague (dir.s), The Theory of Capital, St. Martin Press, Londra 1961.

[7] P. Sraffa, numa carta a C. Napoleoni em 31 de dezembro de 1960, quie me foi assinalada por F. Ranchetti.

[8] S. Steve, Ricordo di Piero Sraffa, “Rivista di Storia Economica”, agosto 2000. Seja-me consentido, a este propósito, citar o meu trabalho Teoria economica ed economia politica: note su Sraffa, in A. V., Produzione, capitale e distribuzione, sob a direção de G. Lunghini, ISEDI, Milano 1975.

[9] F. Y. Edgeworth, Mathematical method in political economy, in Palgrave’s Dictionary of Political Economy, Macmillan, Londra 1894-99.

[10] J. Swift, Viaggi di Gulliver in vari paesi lontani del mondo, Rizzoli, Milano 1975

[11] As raízes situam-se longe. Marx escreveu no posfácio da segunda edição de O Capital (datada de Londres, 24 de janeiro de 1873): “A Economia Política, porque é economia burguesa, isto é, porque concebe a ordem capitalista não como um grau de desenvolvimento historicamente transitório mas, inversamente, como a forma absoluta e definitiva de produção social, enquanto ciência só pode permanecer até que a luta de classes se mantenha latente ou se manifeste apenas através de fenómenos isolados. Veja-se a Inglaterra. A sua economia política clássica situa-se no período em que a luta de classes ainda não estava desenvolvida. Finalmente, o seu último grande representante, Ricardo, estava consciente dos interesses das classes em jogo, da oposição entre salários e lucros e entre lucros e rendas, ponto de partida da sua investigação, tendo ingenuamente concebido essa oposição como a lei natural da sociedade. Mas, desta forma, a ciência burguesa da economia também atingiu o seu limite intransponível. […] Em 1830 ocorreu a crise que decidiu a situação de uma vez por todas. A burguesia tinha conquistado o poder político em França e na Inglaterra. A partir daquele momento a luta entre as classes alcançou, tanto na prática como na teoria, formas cada vez mais pronunciadas e ameaçadoras. Para a ciência económica burguesa esta luta soou ao toque a finados. Agora já não se tratava de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro ou não, mas se era útil ou prejudicial, conveniente ou inconveniente para o capital, se era ou não aceitável para a polícia. Os investigadores independentes foram substituídos por pugilistas a soldo, a investigação científica sem escrúpulos foi substituída pela má consciência e pela má intenção da apologética”.

[12] Veja-se G. Lunghini e F. Ranchetti, Teorie del valore, “Enciclopedia delle scienze sociali”, vol. VIII, Istituto della Enciclopedia Italiana, Roma 1998.

[13] Escreve Marshall:  “Era costume chamar a uma nação “o Corpo Político”. Enquanto esta expressão foi de uso comum, quando se usava o termo ‘Político’ os homens pensavam no interesse de toda a nação e, portanto, ‘Economia Política’ era um nome apropriado para a ciência. Mas agora que, por “interesses políticos” em geral, se entende os interesses de apenas uma parte da nação, parece apropriado abandonar o nome “Economia Política” e falar simplesmente de Ciência Económica ou, mais brevemente, de Economia”. A. e M. P. Marshall, The Economics of Industry, Macmillan, Londres, 1879.

[14] L. Robbins, An Essay on the Nature and Significance of Economic Science, Macmillan, Londra (tr. it. Saggio sulla natura e l’importanza della scienza economica, Utet, Torino 1953).

[15] G. L. S. Shackle, The Years of High Theory. Invention and Tradition in Economic Thought. 1926-1939, Cambridge 1967 (tr. it.: Gli anni dell’alta teoria. Invenzione e tradizione nel pensiero economico. 1926-1939, Istituto della Enciclopedia Italiana, Roma 1984).

[16] Keynes considera “impressionante” a observação de Marx de que “a natureza da produção no mundo real não é – como os economistas muitas vezes parecem supor – um caso do tipo mercadoria-dinheiro-mercadoria, ou seja, como consistindo em trocar uma mercadoria por dinheiro para obter outra mercadoria. Esta pode ser, de facto, a perspetiva do consumidor individual, mas não é certamente a do mundo dos negócios em que apenas se troca dinheiro por uma mercadoria para obter mais dinheiro, de acordo com um processo do tipo D-M-D’, ou seja, o objetivo é obter mais dinheiro e não satisfazer as necessidades do consumidor. J. M. Keynes, The General Theory and After: a Supplement, in The Collected Writings of J. M. Keynes, Macmillan, Londres 1973 ff., vol. 29.

[17] Sobre este tema, veja-se  P. Garegnani, Marx e gli economisti classici. Valore e distribuzione nelle teorie del sovrappiù, Einaudi, Torino 1981.

[18] Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, ISEDI, Milão 1973. Este autor, “em última análise”, omite um grave problema analítico sobre o qual não me vou alongar. Recordo apenas que, no capítulo da Produção de Mercadorias sobre a “redução” das quantidades de trabalho realizado em diferentes épocas, Sraffa demonstra a impossibilidade de encontrar uma medida da quantidade de capital que pode ser utilizada, sem raciocinar em círculos, para a determinação dos preços e da repartição do rendimento: “As inversões que ocorrem no sentido do movimento dos preços relativos, apesar dos métodos de produção permanecerem inalterados, não podem ser conciliadas com qualquer conceção do capital como uma quantidade que pode ser medida independentemente da repartição do rendimento e dos preços”.

[19] D. Ricardo, Works and Correspondence, a cura di P. Sraffa e M. Dobb, Cambridge University Press, Cambridge 1951-55.

[20] G. J. Stigler, Ricardo and the 93 Per Cent Labor Theory of Value, “American Economic Review”, junho 1958.

[21] No que diz respeito a Marx, numa nota de 1927, Sraffa previu que o resultado do seu trabalho seria “uma reafirmação do de Marx, substituindo a sua metafísica e terminologia hegelianas pela nossa própria metafísica e terminologia modernas: por metafísica entendo aqui, suponho, as emoções que estão associadas à nossa terminologia e quadros [esquemas mentais] – isto é, o que é absolutamente necessário para tornar a teoria viva (lebendig), capaz de assimilação e de todo inteligível. Se isto for verdade, é um exemplo excecional de como uma diferença na metafísica pode tornar absolutamente ininteligível para nós uma teoria que, de outra forma, seria perfeitamente sólida. Se isto for verdade, também mostra (ou é um caso excecional? na física não parece ser indiferente) quão pouco a nossa metafísica afeta a verdade das nossas conclusões e como as mesmas verdades podem ser expressas de duas formas muito divergentes. A nossa metafísica está, de facto, incorporada na nossa técnica; o perigo reside no facto de que, quando conseguimos dominar uma técnica, estamos muito sujeitos a sermos dominados por ela”. Ver G.de Vivo, Produção de mercadorias por meio de mercadorias: notas sobre o percurso intelectual de Sraffa, cit.

 


O autor:

Giorgio Lunghini [1938-2018] foi um econommista italiano. Formou-se na Universidade L. Bocconi e foi professor na Universidade de Milão e Pavia. Exerceu também, de 1975 a 2010, na Universidade Comercial Luigi Bocconi o curso avançado de Economia Política-modelos económicos, depois denominado, desde 2007, Teorias Económicas Alternativas. Foi professor catedrático de Economia Política no IUSS-Instituto Universitário de Estudos Superiores de Pavia, de 2007 a 2010, onde continuou a lecionar como professor adjunto. Foi membro da Accademia Nazionale dei Lincei e foi presidente da Sociedade Italiana de economistas.

Foi conselheiro do Governo durante a presidência do Conselho de Massimo D’Alema.

Giorgio Lunghini é autor de escritos sobre o tema da história e da crítica das teorias económicas, da teoria do valor, do capital e da distribuição, da teoria do crescimento e do desemprego. Foi um dos mais conceituados estudiosos italianos no domínio do pensamento económico heterodoxo.

Em colaboração com Mariano d’Antonio editou para a editora Bollati Boringhieri a edição do dicionário de Economia Política (16 volumes publicados de 1982 a 1990), pelo que recebeu o prémio São Vicente. Também para o mesmo editor editou e introduziu nos anos noventa algumas coleções de escritos de John Maynard Keynes, Antonio Gramsci, John Ruskin e Ezra Pound em matéria de Economia Política. Suas são as introduções às reedições italianas das teorias sobre mais-valia de Karl Marx e da história da análise económica por J oseph Alois Schumpeter

Colaborou com jornais, periódicos e associações culturais de esquerda, entre as quais Il manifesto, Critica marxista. Foi membro da coordenação da Associação para a renovação da esquerda e da Fundação Giuseppe Di Vittorio.

A principal lição que se pode tirar das reflexões de Giorgio Lunghini sobre o estatuto científico da economia política é a seguinte: o imenso corpo da ciência sombria – a triste ciência triste segundo a expressão de Thomas Carlyle – é formado por interesses e propósitos, e não por resultados e teoremas. Portanto, a ideia cara ao “mainstream” de um desenvolvimento linear e progressivo do conhecimento económico é uma crença ingénua, uma vez que a novidade da sintaxe não garante a novidade das proposições: na economia é possível (e adequado) retomar os antigos pontos de vista. Daí a grande atenção que Giorgio Lunghini presta às obras dos economistas clássicos, de Marx, de Keynes, que ele recorre para ler as notícias económicas. Esta abordagem metodológica une-o a outros economistas italianos, entre os quais é necessário recordar – sem necessariamente os referir a uma única escola – Piero Sraffa, Luigi Pasinetti, Augusto Graziani, Pierangelo Garegnani, Paolo Sylos Labini e Claudio Napoleoni.

 

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