2.6 O testamento de Maurice Allais – I
Selecção, tradução e introdução por Júlio Marques Mota
O testamento de Maurice Allais,
por Júlio Marques Mota
Sobranceiramente ignorado pelos meios de comunicação social, sem dúvida por causa das suas teses contra a doutrina neoliberal dominante, Maurice Allais tornava efectiva a cortesia e recusava todas as entrevistas. E ainda vivo uma só entrevista e um só texto foram publicados, respectivamente em Fakir e em Marianne2. Aqui a publicação do texto publicado por Marianne 2.
Ah, o bonito baile dos hipócritas! Ignorado enquanto vivo por todos os jornalistas económicos sem excepção, boicotado pelas cadeias de televisão enquanto que actualmente é honrado por aqueles mesmos que negavam a sua existência e olhavam para outro lado sempre que eles publicavam um texto. Porque, recordam estes embalsamadores à Macintosh, é mesmo assim o nosso único prémio Nobel de economia… Um economista brilhante e livre, reconhece Os Ecos que muito pouco dele se lembraram nas suas suas colunas! O liberal e socialista, nota Le Figaro como para justificar que o diário conservador lhe tenha suprimido a sua única tribuna nos anos 90. La Voix du Nord considera Maurice Allais um pensamento único (sim, mas era necessário acrescentar contra O pensamento único).
Ironia da história, a morte de Maurice Allais coincide com um momento da história económica que valida mais do que nunca as suas previsões. A guerra das moedas mostra que das três grandes zonas da economia mundial (América, Ásia, Europa) a Europa é a única incapaz de utilizar o seu mercado para proteger a sua moeda. Os Estados Unidos acabam de adoptar um dispositivo proteccionista para forçar a China a cessar o seu dumping monetário. Quanto à China, sabe-se e desde há muito tempo que a sua adesão à OMC não a impediu de pisar aos seus pés todos os princípios do comércio livre. De imediato, a ideia proteccionista começa, ainda que timidamente, a alargar a sua área de influência. A última convenção internacional do PS é já disso um testemunho. Eis-nos pois perante o que teria feito sorrir Maurice Allais que fulminava frequentemente o liberalismo ingénuo dos socialistas.
Marianne foi o único jornal a fazer uma homenagem a Maurice Allais enquanto vivo (mas sem dúvida um pouco tarde). O nosso jornal publicou o último texto de Maurice Allais que aqui reproduzimos .
Contra os tabus Indiscutíveis
MAURICE ALLAIS, Prémio Nobel da Economia
O ponto de vista que exprimo é o do teórico ao mesmo tempo liberal e socialista. As duas noções são inseparáveis no meu espírito, porque a sua oposição aparece-me como sendo falsa, como sendo artificial. O ideal socialista consiste em interessarmo-nos pela equidade da redistribuição das riquezas, enquanto os liberais verdadeiros preocupam-se com a eficácia da produção desta mesma riqueza. Constituem aos meus olhos dois aspectos complementares de uma mesma doutrina. E é precisamente a esse título de liberal que me autoriza a criticar as posições repetidas das grandes instâncias internacionais em favor da livre-troca aplicada cegamente.
O fundamento da crise: a organização do comércio mundial
A recente reunião do G20 mais uma vez proclamou a sua denúncia “ do proteccionismo“, denúncia absurda cada vez que é expressa sem qualquer diferenciação, como acaba de ser o caso. Nós estamos a confrontarmo-nos com o que no passado chamei de “tabús indiscutíveis cujos efeitos perversos se multiplicaram e se reforçaram ao longo dos anos “(1). Porque tudo liberalizar, acabamos de o verificar, conduz-nos às piores desordens. Inversamente, entre as múltiplas verdades que não são abordadas encontra-se o fundamento real da actual crise: a organização do comércio mundial, que é necessário reformar profundamente, e primeiramente que a outra grande reforma igualmente indispensável que é a do sistema bancário.
Porque liberalizar, acabamos de o verificar, leva às piores desordens. Inversamente, entre as múltiplas verdades que não são abordadas encontra-se o fundamento real da crise actual : a organização do comércio mundial, que é necessário reformar profunda e prioritariamente a uma outra reforma igualmente indispensável que é a do sistema bancário. .
Os grandes dirigentes do planeta mostram uma vez mais a sua ignorância sobre a economia, ignorância essa que os conduziu a confundir dois tipos de proteccionismo: existem alguns proteccionismos que são nefastos enquanto outros são inteiramente justificados. Na primeira categoria encontra-se o proteccionismo entre países de salários comparáveis que não é, em geral, desejável. Por outro lado existe o proteccionismo entre países de níveis de vida muito diferentes e aqui é não somente justificado mas é absolutamente necessário. É o caso particular da China com a qual foi uma loucura ter suprimido as protecções aduaneiras nas fronteiras. Mas isto é igualmente verdade com países mais próximos, mesmo no seio da Europa. Basta ao leitor interrogar-se sobre a forma eventual de lutar contra os custos de produção de cinco a dez vezes inferiores – se é que as diferenças não são ainda maiores – para confirmar que a concorrência não é viável na maioria dos casos. Particularmente, face à concorrência dos indianos e sobretudo dos chineses que além dos custos extremamente baixos da sua mão-de-obra são extremamente competentes e empreendedores.
É necessário deslocalizar Pascal Lamy, [ou seja, é necessário deslocalizar a Organização Mundial do Comércio]!
A minha análise é que o desemprego actual se deve a esta liberalização total do comércio, a via assumida pelo G20 parece-me por conseguinte prejudicial. Vai revelar-se como um factor de agravamento da situação social. A esse respeito, constitui uma grande estupidez, a partir de um contra-senso incrível. Da mesma forma que o facto de atribuir a crise de 1929 a causas proteccionistas constitui um contra-senso histórico[1]. A sua verdadeira origem encontrava-se já no desenvolvimento inconsiderável do crédito durante os anos que precederam a crise. Ao contrário, as medidas proteccionistas que foram tomadas, mas somente depois do aparecimento da crise, puderam certamente contribuir para melhor se poder controlar os seus efeitos. Como já anteriormente tinha indicado, estamos hoje a enfrentar uma ignorância criminosa. Que o Director‑Geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, tenha declarado: “Hoje, os dirigentes do G20 indicaram claramente que esperam do ciclo de Doha: uma conclusão em 2010“, e que este tenha pedido uma aceleração deste processo de liberalização aparece-me um engano monumental. A esta posição uma só classificação: classifico-a de monstruosa. As trocas, contrariamente ao que pensa Pascal Lamy, não devem ser consideradas como um objectivo em si, eles são apenas um meio. Este homem, que antes tinha ocupado um posto em Bruxelas anteriormente, o de Comissário Europeu do Comércio, não compreende nada, nada, infelizmente! Perante tais teimosias suicidas, a minha proposta é a seguinte: é necessário e com toda a urgência deslocalizar Pascal Lamy, um dos factores essenciais de desemprego!
Mais concretamente, as regras a aplicar são elas de uma simplicidade espantosa: o desemprego resulta das deslocalizações elas mesmas devidas às muito grandes diferenças de salários. A partir desta constatação, o que é necessário fazer torna-se imediatamente bastante evidente! É indispensável restabelecer um legítimo proteccionismo. Desde há mais de dez anos, propus que se recreassem conjuntos regionais mais homogéneos, unindo vários países quando estes apresentam as mesmas condições de rendimentos e as mesmas condições sociais. Cada uma destas “organizações regionais “ seria autorizada a proteger-se de maneira razoável contra os desvios de custos de produção que asseguram vantagens indevidas a certos países concorrentes, mantendo ao mesmo tempo simultaneamente, ou seja internamente, no interior da sua zona, as condições de uma sã e real concorrência entre os seus Estados-membros.
(Continua)