O PATO ALGEMADO – IV – por Sérgio Madeira

O Pato algemado – IV

O estranho caso do pastor alemão – O Oliveira do hospital  – por Sérgio Madeira

Flipe Marlove, detective privado (investigações discretas e eficazes) tropeçava em tapetes ou capachos e em palavras e conceitos. Enquanto dormitava, embalado pelo ruído monótono dos motores (parece que é assim que se costuma dizer nos romances). Ocorriam-lhe factos da sua vida passada. A “vida é um palimpsesto”, ensinara-lhe o Dr. Parreira, professor de Filosofia. «O soldado comando olha sempre em frente», berra-lhe a besta do sargento Sampaio na recruta. E por aquilo que ele considerava um fenómeno de imprinting , a teoria que valera ao cientista austríaco, Konrad Lorenz um prémio Nobel, ele acostumara-se a nunca acreditar nas aparências e a tropeçar em capachos, passadeiras e tapetes .Marília, a borbulhenta secretária erradicara todos os tapetes e capachos do andar da Rua dos Correeiros onde funcionava o escritório.  As palavras, morfemas, fonemas e sintagmas, não podia ela afastá-las do caminho do patrão. Muito menos os conceitos filosóficos e científicos – o palimpsesto e o imprinting

O seu primeiro caso importante, ocorrera no parque de estacionamento do Restauradores. Numa noite em que ali fora buscar o carro tropeçara no que pensou ser um tapete. Não era. Estava  caído entre um Smart e um Renault. Levara um tiro no peito e na mão esquerda tinha uma carteira de fósforos onde com letra trémula alguém escrevera – “marquesa oliveira do hospital”. Junto da mão direita uma esferográfica. Filipe ligou pelo telemóvel ao inspector Pais, da Polícia Judiciária que  gostava de se aconselhar com o Filipe. Protegia-o nas incursões fora do estatuto de investigador privado e  Marlove ajudava-o a redigir relatórios e dava-lhe ideias que o faziam brilhar nas reuniões com o senhor director-geral. Era aquilo a que chamava «o imposto de palhota».

Encontravam-se  num café da Duque de Loulé, já perto do Conde Redondo. O Pais descrevia-lhe uma dada situação. Filipe pensava e dava a sua opinião. O Pais, tomava apontamento e agradecia: Não tropeçava em conceitos pois  era homem de poucas palavras Numa das poucas vezes em que falou sem a habitual concisão,  a erudição de Marlove meteu-o em assados. Deixara colegas e director boquiabertos ao afirmar:

– A realidade é um palimpsesto.

– Um Palim quê? – perguntou o senhor director. Mas Pais era um homem prático:

– Filosofia indiana, senhor director. Coisas que aprendi em África com os monhés. Vem tudo no camasutra. Se o senhor quiser, explico num relatório…

E a propósito do imuno-alergologista, Filipe opinara – duas uma ou se trata de uma marquesa qualquer que vive em Oliveira do Hospital ou…

– Ou… – o Pais estava em suspenso.

– Ou de um Oliveira que está numa marquesa do hospital onde o médico trabalhava. Ou…

– Ou?

– Ou … Repare, inspector, que o último a de marquesa está levemente separado, então teríamos: « marques a oliveira do hospital». Ou seja, é o aviso para um tal Marques procurar alguma coisa junto de uma oliveira plantada no jardim do hospital. Ou…

– Ou – o Pais ficou em suspenso.

– Ou, é uma recomendação para a polícia – «marque sa oliveira do hospital» – é só procurar um Sá Oliveira que trabalhe no hospital…

O Pais tomava nota de tudo. E comentou:

– Estrordinário!

Descobriu-se depois que o imuno alergologista fora morto por um ladrãozeco que o assaltara e a quem resistira. O apontamento fora escrito no bar onde o médico bebera uns uísques (daí a letra trémula). Um empregado de mesa recomendara-lhe o restaurante «Marquesa» na estrada de Coimbra para Oliveira do Hospital… «Um cozido à portuguesa que é uma categoria», dizia o homem para o Pais.

Mas o inspector sabia avaliar a ginástica mental. O Marlove era um crânio. Durante um briefing, disse para os agentes:

. – As coisas nunca são o que parecem! É preciso procurar a verdade debaixo das aparências. Foi um filósofo, um tal Palim Sexto Emprinting que o disse. Um sábio australiano.  Ganhou o Nobel e tudo.

Os agentes acenavam com a cabeça: – Sim, senhor inspector!

– A cultura nunca fez mal a ninguém – sentenciou, cofiando os bigodes.

A seguir – A sapateira prodigiosa.

A HISTÓRIA DO CORNETEIRO

 Como diz o inspector Pais, o amigo de Filipe Marlove, «a cultura nunca fez mal a ninguém». Por isso, divulgamos hoje um episódio pouco conhecido da nossa história, mas que explica muito do que está a acontecer.

Nos primeiros tempos da fundação da nacionalidade – tempo de D. Afonso Henriques – no fim de uma batalha o exército vencedor tinha direito ao saque sobre os vencidos.

(Saque – s. m. : acto de saquear. Roubo público legitimado).

Pois bem, após uma dessas batalhas, ganha pelo Fundador da Nacionalidade, o seu corneteiro lá tocou para dar “início ao saque” a que as tropas tinham direito e que só terminaria quando o mesmo corneteiro desse o toque para pôr “fim ao saque”.

Mas, fruto de alguma maleita ou ferimento, o dito corneteiro finou-se, antes de conseguir tocar o “fim ao saque”.

E, até hoje, ninguém voltou a tocar, anunciando o fim do saque.

Afinal a culpa é mesmo do corneteiro!…

Não haverá por aí alguém que conheça o toque ?

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