DA RIQUEZA E DA POBREZA DAS NAÇÕES – 4 – por Fernando Pereira Marques

(Continuação)

Nesta diversidade de discursos e de maior ou menor «moderação», de maior ou menor federalismo ou preocupações socializantes, poder-se-á dizer que veio a predominar uma orientação de tipo radical, na acepção do radicalismo francês da III República, portanto mais girondina do que jacobina (1). Alguns elementos coincidentes com esse radicalismo caracterizaram a doutrina republicana entre nós, se assim é possível chamar-lhe, dada a ausência de uma teorização sistemática.

Em primeiro lugar, a fidelidade — ou, se se quiser, a continuidade —, não propriamente à mitologia revolucionária setecentista gaulesa, mas — no contexto específico nacional — à ruptura iluminada pombalina e, sobretudo, ao vintismo e ao setembrismo oitocentistas. Em segundo lugar, o racionalismo cientista, evolucionista e positivista — de que Teófilo Braga foi o principal expoente —, associado a um activo anticlericalismo, consequentemente à defesa da laicidade do Estado e da sociedade, mas igualmente à defesa do papel emancipador da escola e da educação.

Em terceiro lugar, e semelhantemente ao que se passava em França, o republicanismo recrutou nas classes médias urbanas, entendendo-se por estas as que habitavam pequenas cidades e vilas de província; ou seja, implantou-se entre os médicos, farmacêuticos, veterinários, comerciantes, lojistas, advogados, sem esquecer, claro está, os militares. Aliás, os principais teóricos e doutrinários republicanos — Rodrigues de Freitas, Teixeira Bastos, Basílio Teles — consideravam que era nas classes médias urbanas, e até rurais, que residia o futuro do país e a possibilidade da sua regeneração. Essas classes representariam o que havia de activo, produtivo e positivo na sociedade, contrariamente às classes parasitárias tradicionais, à burguesia que se dedicava a negócios e actividades especulativas de carácter financeiro, e, no  outro lado do espectro social, contrariamente à «multidão inconsciente, servil, ignara, emudecida, que haverá cerca de meio século se deixou cair pesadamente numa espécie de sonolência cataléptica», como escrevia Basílio Teles (2). Já no seu tempo o liberalismo cartista de Alexandre Herculano assentava numa concepção semelhante, quanto à base social necessária à sua sustentação.

Entre outros elementos comuns ao radicalismo francês, refira-se ainda a importância da imprensa regional, de uma intelligentsia provinciana (3) que, por essa via, e pela via do associativismo político-cultural e da maçonaria, criará uma poderosa rede de influentes, de propaganda e de doutrinação a nível nacional, complementar à propriamente partidária. A forma como, por exemplo, os discursos dos deputados republicanos eram difundidos em folhas volantes, entre outras vias eficazes de  difusão da mensagem revolucionária e de culto da personalidade dos principais dirigentes (4), permite concluir que, não obstante as divisões e fragilidades, surgira um primeiro exemplo de partido contemporâneo, hibridamente associando características de partido de quadros com outras de partido de massas. No caso português o anticlericalismo ganhará um lugar particularmente importante na estruturação do discurso doutrinário e na mobilização de largos estratos da população. Tornou-se mesmo, sublinha António Ventura (5), um factor de aglutinação com os sectores socialistas ou anarquistas no âmbito de associações difusoras do livre-pensamento e defensoras do registo civil, ou como os Círios Civis que, enquanto resposta laica a idênticas organizações católicas, promoviam excursões, arraiais e outras actividades conviviais e lúdicas. Comemorações — como o centenário da morte de Pombal em 1882 —, publicações, iniciativas públicas — como os congressos Anticatólico de 1895 e Anticlerical de 1900 —, alimentaram o histórico antijesuitismo e colocaram a questão religiosa no centro de um amplo movimento social, animado por uma vontade crescente de ruptura com a monarquia, considerada indispensável e regeneradora.

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1 Um livro de Albert Bayet, de 1932, intitulado Le radicalisme, termina com o seguinte apelo: «Vous voulez éviter 93? Hâtez-vous de faire 89.» O que faz lembrar a passagem de uma carta de J. Jacinto Nunes dirigida a Manuel de Arriaga, após este ter abandonado a Presidência da República: «Sonhámos com 1789, 1820 e 1848 e acordámos, afinal, com cousa parecida com 1793, a que não faltam nem os Cambon, nem os Hebert, nem os Fouquier Tinville, nem os comités revolucionários.» Cf. ARRIAGA, Manuel de — Na Primeira Presidência da República Portugueza. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1916, p. 185.

2 – Cf. TELES, Basílio — A Carestia da Vida nos Campos. Porto: Livraria Chardron, 1904, p. 138.

3 Vejam-se as referências a este aspecto nas notas biográficas dos deputados das Constituintes de 1911: As Constituintes de 1911 e os Seus Deputados. Lisboa: Livraria Ferreira, 1911.

4 – Veja-se, através da imprensa, como — sobretudo durante a ditadura franquista, 1907-1908 — ostensivamente se publicitavam chapéus, sabonetes, relógios baptizados de «republicanos» ou mesmo Afonso Costa, António José de Almeida, Teófilo Braga, etc.

5 V. VENTURA, António — Anarquistas, Republicanos e Socialistas em Portugal, as Convergências Possíveis (1892-1910). Lisboa: Edições Cosmos, 2000.

(Continua)

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