UM EPISÓDIO DA GUERRA DA RESTAURAÇÃO – A incursão a Villanueva del Fresno em 17 de Setembro de 1642

Texto enviado por António  Marques

Surpreende-nos que nas nações subjugadas por Castela, integradas no Estado espanhol, a independência portuguesa seja vista como acidente histórico sem grande relevância – os catalães costumam atribuir a expulsão dos Áustrias como consequência da Guerra dos Ceifeiros. Não. A independência de Portugal deve-se a uma profunda vontade do povo português de não depender de estrangeiros – Portugal sofreu numerosas invasões. Durante a crise de 1383-1385, Lisboa esteve cercada e parte do seu centro foi incendiado pelos projécteis castelhanos. Em 1640, a nobreza portuguesa, que se mantivera surda aos sintomas de insurreição popular enquanto os seus privilégios foram mantidos, ao ver-se mobilizada para a frente da Catalunha, canalizou o ódio do povo aos ocupantes em proveito próprio. Mas foi o povo que aguentou uma guerra durante 28 anos – com jovens de 16 anos e velhos com mais de 60 a ser integrados nas forças combatentes, derretendo os sinos das igrejas para fabricar canhões, canalizando os fracos recursos económicos para o esforço militar contra uma potência que, ainda que decadente, era bastante mais forte. E vencemos. Sem ser por acaso – porque o povo português não queria ser súbdito da Casa de Áustria. É bom que isso não seja esquecido. Sobretudo num momento em que os estrangeiros, através de gente desprezível, nascida em solo português, voltam a dominar-nos de forma insuportável.

Imagem1

Segundo o soldado de cavalos Mateus Rodrigues, a incursão a Villanueva del Fresno em Setembro de 1642 foi o único sucesso digno de menção comandado pelo general da cavalaria do Alentejo, o Monteiro-Mor D. Francisco de Melo. Esta é a opinião não filtrada pela narrativa propagandística desses primeiros tempos da Guerra da Restauração, emitida por um soldado que participou em muitas acções. Percorrendo outras fontes, encontramos versões mais simpáticas para o general, não só em relações avulsas, como nas mais extensas narrativas de Aires Varela ou Luís Marinho de Azevedo.

Em todo o caso, a incursão às terras de Villanueva del Fresno foi apenas uma das muitas pequenas operações da guerra de fronteira. No caso, destinava~se a castigar a cavalaria daquela localidade, cujo poder atemorizava os moradores do termo de Mourão, pois era ali tão forte que pilhava e se passeava à vontade pelos campos. Os efectivos eram conhecidos dos portugueses: um soldado de cavalos castelhano tinha desertado na sequência de uma briga que tivera com o seu tenente, a quem ferira gravemente, e temendo ser enforcado, fugira para Mourão; interrogado, informara D. Francisco de Melo que a força de cavalaria que havia em Villanueva del Fresno era composta por três companhias pagas e duas milicianas, estas com cerca de 80 cavalos.

Saiu o general de Olivença no dia 16 com 300 ou 400 cavalos (os números apresentados por Aires Varela e Luís Marinho de Azevedo são diferentes), fazendo as vezes de comissário geral o coronel francês François de Huybert de Chantereine (o comissário geral Gaspar Pinto Pestana ficara em Olivença, bastante doente). Conforme refere Mateus Rodrigues, a cavalaria portuguesa tomou um caminho mais longo para não ser detectada, cerca de nove léguas entre Olivença e Mourão, e mais duas dali a Villanueva del Fresno. Na vanguarda ia a companhia do comissário Pinto Pestana, comandada pelo seu tenente Manuel da Costa Monteiro, e a retaguarda cabia à companhia do tenente-general D. Rodrigo de Castro (também ausente da operação), comandada pelo tenente António Machado da França. Pelo caminho, por alturas de Monsaraz, juntou-se o coronel francês Montjouant com o seu regimento (provavelmente, apenas duas companhias). A cavalaria chegou de noite a Mourão e aí descansou.

No dia seguinte, pelas dez horas da manhã, estavam nas proximidades de Villanueva del Fresno. A partir daqui, os pormenores das narrativas de Aires Varela, Marinho de Azevedo e Mateus Rodrigues diferem um pouco, mas não a substância do sucedido, que é no geral coincidente. Segundo Mateus Rodrigues, na madrugada desse dia D. Francisco de Melo escolhera 40 cavaleiros experientes de todas as companhias e entregara o comando desta força ao seu tenente, Francisco Leote (um oficial de grande bravura que iria ascender na carreira militar ao longo da guerra; morreu em Maio de 1655, sendo então tenente de mestre de campo general). O objectivo era emboscar-se num cabeço redondo, de onde se avistava Villanueva del Fresno, de modo a vigiar os movimentos da cavalaria inimiga. De manhã, quando o grosso da força portuguesa tivesse chegado ao cabeço, Francisco Leote e os seus homens deviam ir provocar o inimigo até junto das trincheiras, de modo que a sua cavalaria saísse da localidade e fosse atacada pela restante força portuguesa emboscada. Já Aires Varela refere que o general lançou quinze cavaleiros dos naturais de Mourão, para que a mudança do traje não fizesse reparar o inimigo, e lhes ordenou juntassem o gado, que sem receio pastava por aqueles vales, o que eles fizeram com diligência. Por seu lado, Marinho de Azevedo refere que foram enviados apenas oito cavaleiros tocar arma (ou seja, dar o alarme com disparos para o ar), de forma a espicaçar o inimigo, conforme tinha sido sugerido pelo desertor e informador.

Qualquer que tivesse sido o processo (ainda que Mateus Rodrigues mereça mais crédito, pelo pormenor descrito e pelo facto de ter participado na operação), uma força de cavalaria de Villanueva, comandada por D. Garcia Navarrete, saiu ao encontro dos portugueses por uma das portas da vila, precisamente chamada “porta de Mourão”. Eram somente 40 cavalos, mas um soldado natural de Mourão, que se encontrava de vigia num outeiro, precipitadamente  tocou arma e soltou o alarme de que a cavalaria portuguesa enviada para junto da trincheira estava em risco de ser cortada do resto da força. D. Francisco de Melo revelou então a emboscada e saiu ao encontro do inimigo. Dos 40 cavaleiros, sete fugiram e os restantes foram mortos (segundo Varela), ou dezassete foram mortos e os restantes fugiram (conforme a narrativa mais plausível de Azevedo). Em todo o caso, oito foram capturados, incluindo D. Garcia. A este número acrescenta Mateus Rodrigues mais de 60 paisanos que acorreram a ajudar a sua cavalaria, mas que acabaram cercados “como atuns” e foram trazidos para Mourão. As restantes forças refugiaram-se atrás das muralhas de Villanueva del Fresno e limitaram-se a usar a artilharia com grande prontidão, mas pouca pontaria.

A operação terminou da melhor maneira para a cavalaria comandada pelo Monteiro-Mor, que pôde pilhar à vontade o gado dos campos em redor da vila, não obstante o fogo vivo que cinco peças de artilharia fizeram sobre os portugueses. Uma bala de 9 libras caiu bem perto de D. Francisco de Melo e foi levada, como recordação, para Olivença. Mateus Rodrigues, a quem o general não inspirava muita confiança como comandante, refere – com a irreverência frequentemente encontrada nas suas memórias – que este sucesso foi alcançado porque o general da cavalaria não encontrou grande oposição.

Bibliografia:

AZEVEDO, Luís Marinho de – Commentarios dos valerosos feitos, que os portuguezes obraram em defensa de seu Rey, & patria na guerra de Alentejo que continuava o Capitaõ Luis Marinho d’Azevedo, Lisboa, na officina de Lourenço de Anveres, 1644, pgs. 256-258.

VARELA, Aires – Sucessos que ouve [sic] nas fronteiras de Elvas, Olivença, Campo Maior e Ouguella, o segundo anno da Recuperação de Portugal, que começou em 1º de Dezembro de 1641 e fez fim em o ultimo de Novembro de 1642, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1906, pgs. 95-97.

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (pgs. 39-42).

Imagem: A entrada nos campos de Villanueva del Fresno. Gravura inclusa na obra de Aires Varela acima referida. De notar os pormenores assinalados na própria gravura e identificados com letras: A, o cabeço redondo onde se emboscou a cavalaria de D. Francisco de Melo; B, o espia João Gonçalves; C, o general da cavalaria; D, a igreja maior; E, a cadeia da vila; F, a casa de D. Garcia Navarrete; G, os corredores portugueses (os cavaleiros que foram destacados para incitarem a saída da cavalaria de Villanueva; alguns são representados com varas, destinadas a conduzir o gado); H, as tropas do inimigo saindo da vila; I, o grosso da cavalaria emboscada; L, a vila de Mourão, ao longe.

Leave a Reply