RAMALHO – por Fernando Correia da Silva

Um Café na Internet

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Vossa Reverendíssima insiste ouvir-me em confissão? Compreendo e agradeço o cuidado. Sou conhecido comoImagem2 João Ramalho e corre o ano de 1580. Já fiz 87 anos, amanhã vou apagar-me e quereis que eu vá sem mácula à presença do Criador. Porém, nesta passagem, mais temo por vós do que por mim. Explico-me e perdoai-me o doesto: sois muito verde, noviço recém chegado. Sem prévia vivência das terras do Brasil, não conseguireis entender os volteios da minha vida. Ireis ficar escandalizado como escandalizado ficou em tempos o Padre Manuel da Nóbrega, o fundador desta vila de S. Paulo. Chegou mesmo a pregar que petra scandali era toda a minha vida. Mais tarde corrigiu a opinião, mas que o disse, lá isso disse, e quase me excomungou.  

Não, Padre, Ramalho é a minha alcunha por causa da minha barba que foi sempre ramalhuda. Maldonado é que é o apelido do meu pai. Nome de cristão novo, achais que sim? Antes de vós, já outros disseram o mesmo e até disseram que a rubrica ou gatafunho com que assino os documentos é um kaf, letra hebraica. Portanto, para eles, marrano fugido ou degredado para o Brasil serei eu. Outros opinam que eu sou apenas um náufrago que deu à costa. Nada disso eu desminto ou confirmo. Padre: mais vale cair no mar fundo do que rolar nas bocas do mundo… Contra correntes adversas, não vale a pena resistir-lhes. Não se perca o fôlego, é deixar que nos arrastem. Só quando começam a enlanguescer é que, num repelão, delas podemos nos safar. E eu safei-me, como estais vendo, pois venho aqui para morrer de velho. Padre, foi por entre duas águas que atravessei a vida.

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