Contra a forca, a força d’Abril
por Pedro Godinho
Lá vem o vinte e cinco de abril que tem muito que contar, cravos, canções, povos e revoluções: como se derruba uma ditadura, como se põe fim ao medo, como se levanta a liberdade, como se devolve um povo a si próprio, como se vive a felicidade.
– O povo unido jamais será vencido.
O sectarismo estrangeiro aqueceu o verão, e, distraído pela discussão sobre o lado certo do muro, o povo deixou de estar unido, deixou de fazer e agir, por si. Passou, apenas, a votar, para outros.
Não que o voto, em si, seja errado. Ao contrário, a luta de tantos, tantos anos, em tantos lugares, em tantas e tão difíceis circunstâncias – muito sangue e lágrimas, algumas alegrias – merece o reconhecimento da importância do voto.
Mas, precisamente, fazê-lo, dar ao voto o valor que tem, deve ter, significa que ele não pode ser enterrado na urna, quatro em quatro anos passados, nem apoderado por uma oligarquia de acólitos invertebrados, antes que o voto tem de ser o prolongamento da fala do povo, continuamente.
– O povo é quem mais ordena.
As eleições não são uma cruz, não podem tornar-se no caminho da nossa forca. A democracia ser representativa não é “já cá tenho teu voto, agora decido por ti, porque te represento”; se não for profundamente participativa, se não incluir formas de manifestação contínua da vontade de todos, se as pessoas forem expropriadas do direito a decidir, a democracia também não é representativa, simplesmente, não é democracia. É o que temos. Mas não queremos. Reconquistemos a democracia, com a força doutra vontade. Sejamos capitães d’Abril.
Que força é essa, que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Não me digas que não me compr’endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr’endes
Compreendo.
Mais que dignificar um voto a cada quatro anos cumpria dignificar a democracia participativa, o costume das pessoas de cuidar do público porque é de todos, da mesma maneira que cuidamos do privado porque é da nossa incumbência. Portugal tem na capacidade imensa da língua portuguesa uma oportunidade de ouro para conseguir entender o que é contar com todos em pé de igualdade.
Em resposta a quem perguntou: a canção “Que força é essa” tem letra e música de Sérgio Godinho no álbum “Sobreviventes” de 1971.