HIROXIMA E VIETNAME: MEMÓRIA POÉTICA E CONSCIÊNCIA ÉTICA* – 2 – por Manuel Simões

(Continuação)

Dos trinta poetas aqui representados, quase todos publicam textos inéditos, quer dizer, escritos para a antologia com a perfeita consciência de participarem num acto colectivo. Curiosamente, são os autores já então consagrados (Egito Gonçalves, Manuel Alegre, por exemplo) os que já precedentemente haviam divulgado as suas composições sobre o tema, o que demonstra a atenção e sensibilidade destes poetas relativamente aos mecanismos perversos da guerra em geral e da explosão atómica em particular. Mas outros poetas antologiados viriam a afirmar-se na literatura portuguesa contemporânea, como Casimiro de Brito, João Rui de Sousa ou Orlando Neves; e Rui Mendes, poeta ainda hoje inédito em volume, mas ligado à revista “Êxodo”, dos anos 60, de que foi grande animador com João Vário e Luís Serrano – produz três belíssimos poemas (“Elegia”; “Coro das crianças de Hiroxima”; “Coro dos aviadores, sobrevoando Hiroxima”), aos quais com certo pudor cautelativo deu o título “Cantos circunstanciais de Hiroxima”, antecipando-se talvez ao que os críticos da chamada “poesia pura” designariam, com conotação negativa, por “poesia de circunstância”. Contra esta objecção ou preconceito que não tolera o “poema chamado de encomenda” já se referiu João Cabral de Melo Neto numa sua famosa conferência, defendendo “que um poeta se imponha um tema: cristalize seu poema a partir de um assunto ou de uma tese”[1].

  A antologia revela ainda uma tonalidade unívoca, certamente porque o discurso focaliza um tema comum, embora evidencie diferentes linguagens poéticas, como não podia deixar de suceder. O tecido poético, todavia, baseia-se quase sempre nas terríveis e dramáticas imagens divulgadas em todo o mundo e que impressionaram a memória dos Autores como se se tratasse de um negativo fotográfico que desenvolvesse depois a expansão textual em termos de criação literária. Não raro Hiroxima, como “ciência de matar”, é associada aos métodos hitlerianos (António Cabral, Casimiro de Brito) e a indignidade sucessiva das intervenções armadas noutros pontos do globo (Carlos Loures, Eduardo Guerra Carneiro), estabelecendo uma dialéctica entre duas situações, ambas insustentáveis ao nível do comportamento civilizacional digno desse nome. Trata-se de um discurso que implicitamente envolve a guerra colonial em acto desde 1961, tornada explícita pela inclusão do poema de Manuel Alegre, “Nanbuangongo, meu amor” (Praça da Canção, 1964), em que o sujeito dialoga com o poeta Fernando Assis Pacheco, um autor que precisamente produziu alguns textos eloquentes do que se pode chamar literatura da guerra colonial[2].

Transcreve-se do poema de Manuel Alegre:

 Falavas de Hiroxima, tu que nunca viste

em cada homem um morto que não morre.

Sim nós sabemos Hiroxima é triste

mas ouve em Nanbuangongo existe

em cada homem urn rio que não corre.

… … … … … … … … … … … …

É justo que me fales de Hiroxima.

Porém tu nada sabes desse tempo longo longo

tempo exactamente em cima

do nosso tempo ai tempo onde a palavra rima

com a morte em Nanbuangongo[3].

 No caso presente são postos em confronto dois acontecimentos trágicos (Nanbuangongo, recorde-se, evoca um dos massacres mais atrozes que o exército português efectuou em Angola) através dum tecido poético cujo mecanismo tem origem na memória icónica, presente aliás, como se viu, em toda a colectânea. E igual mecanismo é observado em Vietname, a outra antologia publicada por “Nova Realidade”[4], tal como se pode ler no texto preliminar: “O mundo tem a guerra nos olhos, uma carga emotiva donde irrompem as palavras, os vocábulos rasgando o tecido da afronta e da ruína. Desata-se a memória e o poeta revive as tarefas de resistir. O cortejo dos mortos passa sob o seu espanto. E o seu verbo não esconde a acusação contra o gesto que envergonha a humanidade”[5]. A iconografia da guerra tem, pois, um peso específico e essencial na textura dos poemas, de que é exemplo paradigmático a composição de António Ramos Rosa, cujo título é só por si indicador explícito do processo escritural (“Perante um álbum de fotografias da guerra do Vietname”), o que pressupõe um conjunto de imagens que se transformam em memória poética. E é a este nível que se organiza o exercício poético de outros autores, como, por exemplo: “Acróstico”, de António Rebordão Navarro, com imagens sugeridas por uma fotografia; “Sob o homem”, de Fiama Hasse Pais Brandão, a partir duma notícia dos jornais; ou “O homem arrastado”, de Sidónio Muralha, em que a expansão textual principia com a ironia trágica duma fotografia que “ganhou um primeiro prémio”: “É preciso ver/ ver esta fotografia/ olhar bem a inutilidade desse gesto/ de arrastar um cadáver atrás de um carro blindado/ de braços inertes e de pés atados” (p. 99).

 Se já em Hiroxima era altíssima a percentagem dos poemas inéditos, em Vietname apenas 3 dos 44 poetas tinham publicado precedentemente as suas composições (Alberto Costa, Egito Gonçalves, Fernando Assis Pacheco), o que determina o elevado grau de participação activa dos Autores. O caso de Egito Gonçalves mostra claramente a sua adesão participativa, visto que tendo o seu poema sido anteriormente incluído numa antologia internacional de poesia sobre o Vietname (Ord om Vietnam), organizado na Dinamarca, quis assinalar a sua presença com um segundo texto (“Também aqui Vietname”) escrito “de encomenda” para a antologia.


 [1] João Cabral de Melo Neto, Poesia e composição. A Inspiração e o Trabalho de Arte (conferência pronunciada na Biblioteca de S. Paulo, em 13-11-52, no curso de Poética), Coimbra, Fenda Edições, 1982, p. 11.

 [2] A este respeito veja-se o excelente estudo de Fernando J .B. Martinho, A confissão e a guerra: uma leitura de “Katalabanza, Quilolo e Volta”, in Dalle armi ai garofani Studi sulla letteratura delta guerra coloniale, a cura di Manuel G. Simões e Roberto Vecchi, Roma, Bulzoni, 1995, pp. 21-28.

 [3] Hiroxima, antologia cit., pp. 67-68.

  349 Vietname. Depoimentos de poetas portugueses sobre a agressão norte-americana ao Vietname, coordenação e prefácio de Carlos Loures e Manuel Simões, Tomar, Nova Realidade, 1970.

 350 Ibidem, p. 9.

 (Continua)

publicado por Carlos Loures às 12:00

Leave a Reply