A VISÃO LINGUÍSTICA DE FERNANDO PÉREZ-BARREIRO – por Carlos Durão

Quando visitei a Feira do Livro de Vigo este verão, numa brevíssima estadia na pátria (pois vivo na emigração), conversei com certo amigo livreiro, mormente sobre a precária situaçãoImagem1 da sua profissão. Não vira na sua livraria nenhuma publicação galega que fosse realmente novidade para mim, mas também queria fazer-lhe alguma despesa, como acostumo nestas ocasiões, e, quando já me dispunha a ir-me embora, reparei no volume “Amada liberdade” (Eds. Xerais, Vigo, 2013), as memórias do meu saudoso amigo e colega Fernando Pérez-Barreiro.

 Vira só uma referência do livro na Internet (quase o único meio que hoje tenho para manter o contato com a Galiza), e então decidi comprar-lho. Não sei se foi casualidade ou não, mas isso serviu-me para remexer velhas ideias partilhadas. E digo “velhas” e “ partilhadas” com plena justificação, como aginha se verá.

 Com efeito, para além dos panegíricos habituais nestes casos da saudosa ausência dum amigo, eu quisera lembrar o Fernando contribuindo com algo de realmente novidoso nestes meios (ou assim mo parece, pelo que levo lido). Bem sei da sua trajetória inteletual, dos seus amigos de geração, como X.L. Franco Grande ou Ramón Lugris, do seu amor pela língua e cultura chinesas, do seu trabalho em organismos britânicos ou internacionais de Londres (também por mim compartilhados), mas, que eu saiba, ninguém por estes pagos se arriscou a mencionar outro aspeito (talvez propositadamente ocultado?) da sua visão linguística.

 Refiro-me, claro, às suas ideias sobre esta língua que estou a utilizar. É ela galega? portuguesa? Ambas? É já hora de citar o próprio Fernando. Eis, como exemplo, o que ele opinava por volta de 2007 (no blogue http://www.grupotraballogalego.uk.net/boletin.htm, de março do 2007, se não lembro mal):

 “¿ESTAMOS NO MUNDO DA LÍNGUA PORTUGUESA?

 Para convencer aos que non queren o galego da utilidade que poda ter aprendelo arguméntase que é unha língua “universal” porque está no ámbito do portugués.

 É certo que o galego de seu é a mesma língua que o portugués, mas por razóns históricas, políticas e psicolóxicas hai moitos séculos que deixou de estar no mesmo ámbito que o portugués. Entre o galego oficial e “normalizado” de hoxe e o portugués hai tanta diferencia como entre o castelán e o portugués, porque ese “galego” que se impón pola forza non é mais que castelán galeguizado.

 Para alguén de língua portuguesa tan alleo é “conejo” como “conexo”; outra cousa sería se lle dixesen “coello”, que é como se di en portugués e como se di en galego de verdade. Tan alleos son á língua portuguesa, ou á galaico-portuguesa, “viernes” e “miércoles” como eses horríveis “venres” e “mércores” que nunca existiron no galego de verdade e que nunca se terían inventado se houbese algunha intención de recuperar o galego. E a alguén de língua portuguesa élle mais doado de entender se ve escrito “una” en castelán que se ve “unha” en galego inventado, que lerá “uña”.

 Os que cren que se pode entrar no ámbito do portugués có “galego” debían facer a prova de ver se son capaces de entender unha película en portugués. Se non entenden, ¿será que os da película non saben falar e falan “gallego cerrado” como falaban os da aldea?”

 Explícito, não? Mas é que o Fernando já opinava assim “desde sempre”, quer dizer, que eu lembre, pelo menos desde os tempos em que compartilhávamos a redação do Boletim do Grupo de Trabalho Galego de Londres (fundado no ano 1970).

 Este Boletim quase-bimestral do G.T.G. (fundamentalmente para os mestres das escolas rurais galegas se familiarizarem com a primeira Lei do Ensino, do 1970) tinha a sua seção de correspondência aberta não só a esses mestres mas também a qualquer pessoa interessada nos problemas do idioma galego, tais como os professores portugueses Agostinho da Silva e M. Rodrigues Lapa, e o escritor e pedagogo galego Ben-Cho-Shey.  E incluía um Suplemento, com material escolar.  Nos suplementos aos nos 7 e 8 (fevereiro e abril do 1972), o Boletim levava textos portugueses, com algumas instruções para facilitar a sua leitura.  No no 9 (Natal) fazia-se um primeiro intento de adaptar textos de Castelão à ortografia comum internacional.

 O G.T.G. publicou um Plano pedagógico (“Plan pedagóxico galego”, revista Grial, no 32, pp. 202-10, 1971), que era uma redação coletiva do Grupo (composto ademais por Teresa Barro, Xavier Toubes e Manuel Fernández-Gasalla), e no que se dizia: “o galego non é lingua minoritaria. É -aínda- a lingua da maioría do pobo galego, a de Portugal, Brasil, Angola, Mozambique e outros pobos de África e Asia”; e ainda, referindo-se ao começo do sequestro do idioma galego nos derradeiros anos do franquismo: “unha técnica pedagóxica que semella protexer as linguas vernáculas pode ser, en realidade, o instrumento de unha política que ten decidido eliminalas”.

 O Grupo era bem consciente deste perigo, e no Boletim no 4 (julho de 1971, p. 3) dedicou ao manual Gallego 1, do chamado Instituto de la Lengua Gallega (fundado no 1971, e presidido por Constantino García González, o introdutor do “galego autonómico”), uma pequena crítica na que várias vezes notava o seu caráter autoritário, e também a “policía rigurosa” que o Sr. García propusera no seu inapresentável artigo “Orixen e problemas do método de galego” (Grial, no 32, 1971, p. 132).

 Como ficou dito, o Fernando assinava essas redações coletivas do Grupo no Boletim.

 Posteriormente, foi convidado pelas Irmandades da Fala a algumas Jornadas do Ensino da Associação Sócio-Pedagógica Galega, nos anos 80 do século passado.

 Também se debruçou sobre este tema num longo artigo em inglês, no que afirmava a sua convicção, ao tempo que exteriorizava as suas reticências (Which Language for Galicia? The Status of Galician as an Official Language and the Prospects for its “Reintegration” with Portuguese, revista Portuguese Studies, vol. 6, pp. 191-210, 1990, Department of Portuguese, King’s College, London; na Rede: http://www.jstor.org/discover/10.2307/41104913?uid=3738032&uid=2129&uid=2&uid=70&uid=4&sid=21102530002797).

 Eis um par de excertos: “Portuguese is the promised land for Galician. At present, however, everything seems to conspire against the fulfilment of that promise. This should not necessarily preclude the possibility of a reintegration which seems to me, however difficult it may be to achieve, the only legitimate solution, since it would be based on the historical and philological grounds of the original identity of the language. Further, it is the only one possible, in view of my belief that the present linguistic policy of the Galician authorities offers the language no future other than dialectization.” (p. 209)

 “The ultimate aim of reintegrationism should ideally be the acceptance by a large majority of Galicians of the fact that Portuguese is the language of which they have been deprived by history and that its recovery would contribute to the assertion of Galician distinctiveness.” (p. 210)

 Ainda, nas sua memórias, afirma:

 “Desde o inicio do boletín do Grupo de Traballo Galego, no comezo mesmo do decenio de 1970, era unha das maiores preocupacións do Grupo o problema da lingua galega e o seu futuro. Intuíamos que unha das feridas históricas de Galicia fora o desencontro co mundo do portugués. O trauma da separación tivera que ser moi forte, e non víamos que se fixese moito caso diso nas análises e reivindicacións do galeguismo. Non se resaltaba que para o triunfo do centralismo houbera que amputar a comunidade galaico-portuguesa.

 […] Sen a brutal unificación dos monarcas “católicos”, a sociedade galega seguiría falando portugués e acompañaría a evolución desa lingua. Esgazada do tronco portugués, a vida galega sufriu unha incómoda situación e unha división social acentuada con gravidade, que aínda agora non acabamos de valorar debidamente, pola diferenza lingüística.

 […] En Galicia, a clase traballadora, maiormente rural, falou portugués, máis e máis debilitado e contaminado co decorrer do tempo, e a clase dominante falou castelán. Non nos convencía no Grupo a explicación, implícita nos homes de Galaxia e desenvolvida con roupaxe filolóxica polos seus discípulos e herdeiros do Instituto da Lingua Galega, que por entón comezaban as suas actividades, de que o galego falado nos nosos tempos era produto lexítimo dun desenvolvemento propio, como o de calquera outra lingua.” (pp. 243-4).

 Contudo, há que reconhecer que, tendo-se convencido inteletualmente da eminente pertinência da “ideia”, o certo é que, pessoalmente, o Fernando nunca a levou a vias de “prática”, e continuou a escrever na grafia supostamente “oficial” das instituições do Estado Espanhol na nossa Terra, a mesma que, por exemplo, a Editora Galaxia, o ILG ou a RAG (da que ele veio a ser correspondente).

 E isso por que? Não podia ser por falta de sólidos alicerces científicos: ele relacionava-se assiduamente com vultos muito críticos com aquele sequestro do idioma galego, como R. Carvalho Calero ou M. Rodrigues Lapa, por exemplo; e mais tarde, muito brevemente, com E. Guerra da Cal em Londres (fui eu quem os apresentou). Também era consciente do paulatino mas firme arraigamento dessa “ideia” entre as novas gerações na nossa Terra: não só as mencionadas IF e a AS-PG, mas outras, como a Associação de Amizade Galiza-Portugal, a Associação Galega da Língua, a Academia Galega da Língua Portuguesa, e ainda a participação galega nas negociações que viriam desembocar no Acordo Ortográfico de toda a Lusofonia, do 1990. E ademais, por se ficasse alguma dúvida ao respeito, ele era um excelente conhecedor do português, tanto escrito quanto falado, em pelo menos as variantes portuguesa e brasileira. Então por que não praticou aquilo do que estava convencido?

 A pergunta, ainda sem resposta, não é retórica, mas sim uma pergunta que é preciso fazer. Contudo, por amizade, eu prefiro deixá-la aqui. Em todo o caso, da honestidade e convicção inteletual do Fernando não podem ficar dúvidas.

Tal era ele.

Carlos Durão, Londres, agosto de 2013

6 Comments

  1. “Inteletualmente”, “inteletual”? Tanta pressa em aplicar a porcaria do acordo ortográfico, que nem o sabe aplicar. Santa indigência inteleCtual!

    1. Caro Ricardo Horta, a sua crítica é que é apressada. O português de Carlos Durão é excelente – note que ele se exprime na variante galega do nosso idioma comum – as diferenças sintácticas existem, tal como entre a nossa variante e a brasileira, por exemplo.

      1. Excelente? A misturar galego com (pretenso) português pós-AO? E desde quando se escreve “inteletual” em galego? Ou em português pré ou pós-AO? Por favor…

      2. Sim, intelectual e não inteletual. Mais erros ou há só esse? Grande parte dos colaboradores deste blogue, é contra o Acordo Ortográfico. Mas as opiniões são livres e os amigos galegos defendem a aplicação do AO. Um erro ortográfico nunca é culpa do colaborador, mas sim da coordenação do blogue que devia fazer uma revisão aos textos. Não o fazemos por falta de tempo. Porém, meu amigo, basear uma crítica num erro ortográfico…

      3. Um erro ortográfico escrito três vezes? É não saber escrever, ponto final. Aliás, basta ter adoptado o AO para não saber nada do mesmo ou da língua, por arrastamento. Já vi galegos a escreverem segundo a norma brasileira do AO à boleia dessa ideia reintegracionista estapafúrdia. Já para não falar dos conceitos de galeguia (!). Não ajudem a escangalhar ainda mais a língua portuguesa. Poupem-nos!

Leave a Reply