«QUEM LHE DISSE QUE EU REZO?» – ENTREVISTA COM MÁRIO DE OLIVEIRA

Na sua edição de 19 de Agosto, o jornal Correio do Porto apresenta uma extensa entrevista com Mário de Oliveira, omariooliveira552[1] nosso amigo e argonauta padre Mário, sob o título “Ao desafio com Mário de Oliveira “. É um volumoso questionário, uma entrevista, conduzida por Paulo Moreira Lopes, com 26 perguntas e outras tantas respostas. Algumas das perguntas afiguram-se embaraçosas, mas o nosso Mário de Oliveira não é pessoa para se embaraçar…  Vamos reproduzir, com autorização expressa do entrevistado, as perguntas e as respostas,  texto que, pela sua extensão, não podemos publicar numa só edição e que vamos publicar em quatro. Ao Correio do Porto, a Paulo Moreira Lopes e a Mário de Oliveira, os nossos melhores agradecimentos.

Quando se apresenta diz que é o padre Mário ou que é o Mário?

Para mim, dizer Mário e Padre Mário, é dizer a mesma pessoa, única e irrepetível, que sou, ainda e sempre em vias de ser até à plenitude do humano. Desde que fui ordenado presbítero da Igreja do Porto, é esta a minha identidade substancial. O ser humano concreto que sou, filho da Ti Maria do Grilo e do Ti David, é, desde então para cá, Padre Mário. Não tenho como despegar Mário do padre/presbítero da Igreja do Porto. Por isso, mesmo como jornalista profissional, agora já na condição de reformado activo, sou Padre Mário. Por mais que o B.I. me diga simplesmente Mário. E não se pense que é um privilégio para mim. É uma responsabilidade acrescida que vivo com alegria e como um menino entre e com os demais. Bem longe dos templos e dos altares.

É sacerdote, vive como sacerdote, pensa como sacerdote e tem complexos de sacerdote?

Em 5 de Agosto de 1962, fui ordenado presbítero da Igreja do Porto. Não fui ordenado sacerdote. No universo de Jesus, o filho de Maria, que deverá ser também o universo da Igreja que se reclame do seu nome, não há lugar para sacerdotes. Só para seres humanos. Em mim, o presbítero é a minha forma de ser humano maduro, autónomo, irmão universal, responsável por toda a criação. Com uma especial sensibilidade para dar pela presença das vítimas humanas e outras, e viver organicamente entre elas e com elas. Por isso, pobre por opção, desde o primeiro dia. Lamento que o Paganismo tenha entrado na Igreja, destronado o Evangelho de Deus que é Jesus, e esteja escancaradamente, desde então, ao comando dela. Cabe-me resistir-lhe, não deixar que ele se apodere de mim. Por isso, presbítero, não sacerdote. Com a missão de Evangelizar os pobres e os povos.

Por ser de Oliveira, considera-se um homem de paz?

Não seria ser humano, se não fosse homem de paz. Paz desarmada, já se vê. Por isso, nos antípodas da paz armada dos impérios. Paz ostracizada e crucificada, como Jesus, a nossa Paz. Porque os Poderes, o que mais odeiam, é uma mulher, um homem paz desarmada. Mas só mulheres, homens, assim, paz desarmada, humanizam/sororizam[1] o mundo.

Quando reza, reza com Deus, para Deus ou sem Deus?

Quem lhe disse que eu rezo? Prefiro que seja Deus que nunca ninguém viu e nos habita mais íntimo a nós que nós próprias, nós próprios, a rezar em mim. Rezar, reproduzir fórmulas ou dizer muitas palavras, é uma actividade típica das religiões, todas perversas. Querem-nos infantilizados, a vida inteira. A crescer no medo. Não vou por aí. Aprendo com Jesus a viver sempre com Deus, mas sempre sem Deus. Por isso, como se Deus não existisse. Mesmo nas situações mais extremas e difíceis, é sempre a mim próprio que apelo. Ao que há em mim de mais profundo e íntimo. Não a Deus. Só assim cresço de dentro para fora. Se apelasse/recorresse a Deus, cairia na idolatria religiosa. Cresceria Deus e eu diminuiria. Não vou pela fé religiosa. Vou pela mesma Fé de Jesus, que me religa maieuticamente a todos e a todo o cosmos. Não frequento os mercados das religiões. Nem os seus santuários. Não sou eu que digo Deus – seria idolatria! – é Deus, o de Jesus, que nunca vejo – que me diz. As religiões não têm qualquer sorte comigo. Todas me são estranhas. Os seus chefes são mercenários, ladrões e salteadores, no desassombrado dizer de Jesus, o do Evangelho de João. Não entram pela porta da casa do universo, que é o ser humano pleno e integral, Jesus, o de antes do cristianismo, mas por outro sítio, o do Poder. Cabe-me, como a cada uma, cada um de nós, viver, cada dia, cada hora, cada instante, como se Deus não existisse. E é assim que procuro viver.

Foi viver e pregar para a Lixa com o objetivo de aperfeiçoar e/ou chatear os outros?

Lixa (Macieira da Lixa) colou-se para sempre ao meu nome, desde que, no início da década de setenta do século XX, fui nomeado pelo Bispo António Ferreira Gomes, seu pároco. Como é sabido, o ofício eclesiástico traz, geralmente, acoplado um benefício eclesiástico. Por isso, se não nos acautelarmos, pouco tempo depois de o assumirmos, somos corrompidos pelo benefício e tornamo-nos agentes de corrupção. Para que tal não acontecesse comigo, sempre me comportei, entre as populações e com elas, como uma espécie de anti-pároco. Estava na função, mas como ser humano maduro, nunca como Poder. E com o objectivo de fazer implodir aquela função, no que ela tem de Poder. Desse modo, não fui corrompido nem me tornei agente de corrupção. Sempre fui companheiro de todas as horas das populações que fazem esta aldeia do concelho de Felgueiras.

Obviamente, nove meses depois, já era um pároco preso político em Caxias. Quem não se deixa corromper nem se torna agente de corrupção, é politicamente subversivo e tem de ser preso político. Ou, se em regime democrático, um ostracizado político. Nenhum dos três Poderes que dominam o mundo, confia num ser humano que não se deixa corromper. Os três sabem bem que um ser humano assim sempre os deixa ficar mal, na hora de tomar decisões menos transparentes. Foi o que me sucedeu. Depois de duas prisões políticas, como pároco de Macieira da Lixa, e de outros tantos julgamentos no Tribunal Plenário do Porto, o mesmo Bispo que me havia nomeado, retirou-me, subrepticiamente, a paróquia e confiou-a a outro. E eu vi-me, de novo, como no dia 5 de Agosto de 1962: presbítero da Igreja do Porto, simplesmente. Sem ofício eclesiástico e sem benefício eclesiástico. Incorruptível, portanto. “Irrecuperável”, para o sistema eclesiástico e qualquer outro, como de mim diz, em 1968, o Bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues, quando, juntamente com o quartel-general, me fez expulsar de capelão militar na Guiné-Bissau, por ter-me atrevido a pregar a Paz desarmada aos que nossos soldados armados que faziam a guerra.

Presentemente, há mais de 9 anos que vivo de novo em Macieira da Lixa, mas, desta vez, por opção minha, por isso, não mais como pároco, apenas como presbítero da Igreja do Porto. Numa casinha arrendada. E com a minha pequena reforma (660,00€/mês), de jornalista. Numa presença, estilo vasos comunicantes, entre as populações e com elas. E, daqui, conectado em permanência ao mundo, via internet, youtube, facebook, correio electrónico, telemóvel, Jornal Fraternizar online, encontros ao vivo, lá, aonde é desejada a minha presença, e através de muitos livros que escrevo e edito. O que significa que só tenho entrada efectiva na vida das populações, se elas me desejarem e acolherem nas suas mesas, já que, como presbítero, não tenho templo nem altar, só mesas compartilhadas, como Jesus. Obviamente, a esmagadora maioria das pessoas continua a preferir o pároco que o é desta freguesia e de mais três, uma espécie de funcionário eclesiástico, em tudo semelhante aos funcionários intermédios de uma grande multinacional, que muito raramente vê o patrão, no caso, o Bispo residencial da Diocese. É um funcionário inevitavelmente corrompido pelos benefícios eclesiásticos que aufere e, nessa mesma medida, agente de corrupção das populações. Um felizardo infeliz que desconhece a ternura, a liberdade, a autonomia, o afecto, a gratuidade, a maiêutica. Não passa de um agente mais, do Poder eclesiástico, sobre as populações das quatro paróquias. E, simultaneamente, de um súbdito obediente e reverente mais, no que respeita ao Bispo residencial, patrão de turno, da Diocese do Porto. Uma infelicidade de fazer chorar até as pedras. Mas que ele, para seu mal, não chega sequer a dar por isso. Tão pouco as populações, suas vítimas.

(Continua)

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