Hoje, como num eco da edição dedicada ao Brasil, Clara Castilho traz-nos uma nota sobre Maria Stella de Azevedo Santos, mãe de santo, negra e académica.
A escritora Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxóssi, foi a primeira mulher negra e mãe de santo a ocupar uma cadeira na Academia de Letras da Bahia. Justamente a de número 33 que teve como patrono o poeta Castro Alves e último ocupante, falecido em janeiro deste ano, o professor e historiador Ubiratn Castro, presidente da Fundação Pedro Calmon, intelectual, que tem um histórico de combate ao racismo.
Em simultâneo com a sua iniciação religiosa, Mãe Stella estudou e formou-se pela Escola de Enfermagem e Saúde Pública, exercendo a função de visitadora sanitária por mais de 30 anos.
Como se isto não lhe chegasse, lançou o seu primeiro livro em 1988 e já podemos contar seis livros. Em 2013, foi eleita por unanimidade para a Academia de Letras da Bahia.
No dia 12 de Setembro ocupou a cadeira 33 na Academia de Letras. O seu discurso foi muito longo, mas dele retiramos:
[…] “Hoje, aos oitenta e oito anos de idade, estou eu recebendo, outra vez, uma corrente, que segura uma linda medalha, e também mais uma cadeira. […] Não sou uma literata “de cathedra”, não conheço com profundidade as nuanças da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua yorubá. Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores. Sou brasileira. Sou baiana. A sabedoria ancestral do povo africano, que a mim foi transmitida pelos “meus mais velhos” de maneira oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo.[…] Se minha parte branca estuda as origens latinas da língua portuguesa, minha parte negra estuda a língua africana de que fazemos uso no candomblé: o yorubá arcaico.
[…]
Muitas pessoas, no passado e no presente, lutaram para que hoje eu pudesse, de maneira natural, fazer parte desta Academia. Uma delas foi o patrono da cadeira onde me firmo. Antônio Frederico de Castro Alves entoou gritos poéticos na tentativa de despertar a sociedade brasileira para a mais cruel de todas as atitudes humanas: a privação da liberdade. Em 1868, através de seu poema “Vozes d’África”, ele clamou:
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito… Onde estás, Senhor Deus?… Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia – Infinito: galé! … Por abutre – me deste o sol candente, E a terra de Suez – foi a corrente
Que me ligaste ao pé…
Se minha bisavó chegou ao Brasil presa a muitos outros negros africanos, amarrada por correntes que lhe tiraram o maior de todos os bens que pode ter qualquer ser vivo – a liberdade, hoje aqui me encontro acorrentada por um adorno que me une a todos os baianos, brasileiros, humanos, letrados ou não letrados. O Poeta dos Escravos desejava ver todos os homens tratados com igualdade de condições; queria ver desacorrentados os negros escravizados. Por isso, Castro Alves escreveu um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, “O Navio Negreiro”, no qual denunciava as atrocidades sofridas pelos africanos na travessia oceânica que foram obrigados a se submeterem:
Era um sonho dantesco… o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros… estalar de açoite… Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar… Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs! E ri-se a orquestra irônica, estridente… E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais … Se ovelho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos… o chicote estala. E voam mais e mais… Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri!
Na cadeira 33, e em todas as outras que compõem esta nobre instituição, cabe pessoas de todas as profissões, cores, religiões, estilos literários… Na cadeira 33, e em todas as outras desta instituição, só não cabe vaidade, nem modéstia. Não sendo vaidosa, digo que, com certeza, não fui escolhida para ser uma acadêmica pelo fato de escrever livros com sofisticação gramatical. Não sendo modesta, tenho a convicção de que se hoje aqui estou é por escrever minhas experiências de modo a cumprir meu compromisso sacerdotal. Não se esqueçam que compromisso e união são as bases em que meu discurso foi fundamentado. Sentar-me na cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia era meu destino.”[…]