É de casaco comprido, com pelinho na gola e nos punhos que Menina Maria Luísa se apresenta ao balcão do banco.
Quantos anos terá tal casaco? Bem mais do que a meia de mousse que fica larga no tornozelo, e o sapato de luva castanho, de biqueira quadrada.
Leva sua carteira vintage, com botão de madrepérola, enfiada no braço direito, e com a mão esquerda segura um enorme chapéu de chuva.
Da malinha retira lenços, canetas, papeis e mais papeis, e ainda mais papeis, até dar com o talão que a motivou a sair de casa.
– Tinha lá este papel e não percebo o que é isto.
– Foi uma transferência Menina Maria Luísa
– Mas transferência de quê?
– A Menina Maria Luísa transferiu esta quantia para esta conta.
– Não sei de nada. Transferência para onde?
E assim continua a questionar a funcionária, com voz trémula, mas convicta e nenhuma explicação lhe serve. Mas conhece este nome? Sim senhora, é o irmão mais novo, mas que já morreu há muitos anos.
Mas tem a certeza? Tem sim senhora…
Morreu, há muito tempo, o mesmo tempo há que não o vê. Bem sabe, quando escolheu sair de casa para ficar com a que andava por aí, morreu para todos. Não puderia continuar cá, junto com aquela mulher vinda sabesse lá de onde, com um filho em cada braço.
Juntar-se a qualquer uma, sem nome, sem casa, sem pai nem mãe, e sem Deus, o que teria passado pela cabeça do Júlio para regressar da com uma tal aberração? Onde se vira aqui na terra uma doidivanas de vestido curto, mostrando os joelhos e pernas castanhas, escondendo os olhos atrás de grandes borrões de cor.
E continuava Menina Maria Luisa, sobre a morte de Júlio, enquanto afaga seu cabelo branco e dourado, apanhado num coque simples, mesmo sobre o pescoço, como sempre usara, afinal, tentando esquecer a textura do cabelo encrespado que Mingas usava, emproado, volumoso, e no qual não conseguira deixar de tocar, de raspão, roída de curiosidade.
– Mas Menina Maria Luísa, esta conta está activa, e tem movimentos recentes. Todos os meses a menina transfere a mesma quantia para esta conta.
– Não pode ser, ele morreu…
– Mas ainda ontem este senhor cá esteve, veio com a mulher. Ela vem sempre a empurrar a cadeira. Eles moram aqui pertinho, alí na rua do mercado
– …….
– Mas repare, esta é a sua assinatura, não é?
– É sim, menina.
– Já viu, Menina Maria Luísa, tem uma letra tão bonita!
– Pois é, menina, já era assim quando fiz o exame da quarta classe, e continuei sempre.
– Pois veja, não há qualquer engano, a senhora faz este depósito mensalmente há tantos anos. Eu só estou aqui há dois, mas até costuma ser comigo. Sempre ao dia cinco do mês, mais coisa menos coisa…
E Maria Luísa respira fundo…não podia deixá-lo morrer à fome, pois não? o seu rico menino, estropiado de uma guerra que o roubara dela…
Deserdado por um pai que se finara irredutível, que a prendera a casa, a uma mãe que demorara décadas a morrer, matando-lhe a juventude e o viço a ela, pagando-lhe a perda de uma vida própria com as rendas de seis casas. E a ele, nada.
Apenas dois filhos de olhos grandes e nariz espalmado, da cor do café com leite, e uma incansável mulher preta que fazia nascer do quintal da casa arrendada as mais viçosas hortaliças, e multiplicava batatas em meia dízia de canteiros.
Uma mulher preta que fazia magia, alimentando o marido amputado de pernas e com um só braço e os filhos sozinha, em silêncio, sem se queixar da sorte. Que colocara os meninos na escola, sabe-se lá com quê, de onde sairam para trabalhar na fábrica. Que lavava, vestia aquele homem de quem só fora mulher e amante nos três anos em que ele saía à sucapa do quartel de Mocuba para se encontrarem na terra ainda quente, depois do cair da noite.
– Pois não, Menina Maria Luísa, não podia…
E dela, quem cuidaria? Ela, que nunca tinha sido de ninguém.
Agora, dona de tanto, sem ninguém com quem repartir, sentiu que até o cérebro lhe ia fugir.