ALDICA – por Margarida Ruivaco

Um Café na Internet

Aldica é burra todos os dias. Não consegue juntar letras numa palavra sem dar erros, nem consegue somar pelos dedos nem que seja três mais três. É burra, pronto.

Dizia-lhe a mãe, dizia-lhe o pai antes de quinar com a cirrose, dizia-lhe a professora que a teve de aturar na primária quase até aos catorze. Diziam em coro os garotos no recreio, quando ela ficava de castigo por não saber o nome de nenhum rio para além da ribeira que se via da escola.

Tinha vindo de longe para ali, tão pequena que não se lembrava de passar o Douro, o Mondego e o Lis. Nem tem ideia de quantos quilómetros faltam para se passar o Tejo, porque nunca foi para esses lados. No mapa de Portugal está para baixo, deve ser Sul. “Nós temos aqui, minha senhora.”

Mas o que sabia ela aos catorze? Pentear um cabelo cor de folhas de milho secas, comprido, a roçar o cós da saia e rapar as pernas com uma lâmina velha escondida na gaveta da cómoda.

Rir-se aos rapazes, que às vezes lhe pediam para levantar a saia e mostrar a coisa.

E foi por mostrar que levou sovas da mãe, e que nem chegou a ir trabalhar para a fábrica, ficou em casa a ajudar a roçar mato, apanhar caruma, a lavar roupa, a cavar o quintal, a semear, plantar, regar colher, enquanto a mãe saía para ganhar a jorna.

E tão necessitada estavam de tostões, que a mãe saía mais do que queria, e na filha entravam mais do que a conta, os que há muito lhe procuram as partes. E ela ria-se, “atão o qué que havia de fazer? Até era bom!”

A burridade teve que se ir, porque cedo se viu de barriga cheia, e teve de arranjar desculpa para conseguir ir à parteira, na mota, com o Emídio e voltar a tempo de fazer o jantar para a mãe e passar dias os dias seguintes a sachar batatas sem de queixar.

Quando a mãe morreu, disseram-lhe que foi cancro.  Por essa altura, já morava lá em casa o Toino, que entre dias de bom trato e dias de bofetões, sempre levava um cheque para casa ao fim do mês. Ficaram sozinhos. Ela mais sozinha que ele. Sem encher de novo a barriga, porque o doutor Matias já a avisara que tinha ficado estragada da outra vez. E isso não contara ela ao Toino.

Quando o Toino se foi embora, ficou apalermada, e nem sabia se era para chorar ou não.

Deu-lhe a esperteza para fazer contas e saber que o quintal não dava tudo, e que as galinhas levavam mais tempo a crescer do que a comer. E conseguiu ir por turnos para a fábrica, quatro quilómetros a pé, para cada lado, de dia ou de noite, com sol, com chuva, com calor ou geada.

Pouco tempo. Desmaiou, um dia. Vieram os bombeiros, foi ao hospital. Tinha cancro.

Cortaram-lhe as duas mamas. Ficou de baixa. Continuou doente. Cortaram as miudezas. Caiu o cabelo, inchou a cara, inchou a barriga, emagreceram as pernas, desinchou, inchou, doeu-lhe, chorou sozinha em casa, ou no caminho a pé para o posto médico, para a farmácia, para a carreira.

Alda Maria C. P . , deitada na cama do hospital, não consegue sequer perceber porque é que lhe aconteceu tudo isto só de ter levantado a saia. Há vinte e cinco anos atrás. Mas tem a certeza que a dúvida não a vai incomodar muitos mais dias.

1 Comment

Leave a Reply