Vozes no Silêncio – 1 – por António Sales

Um Café na Internet

 

 

CamiloEste texto de António Sales é, na nossa opinião um trabalho de uma grande qualidade literária, coisa que não nos surpreende, pois conhecemos o grande talento deste escritor, mas que nos apraz registar. Pela sua elevada qualidade, publicamos Vozes no Silêncio apesar de, pela sua extensão, nos obrigar a segmentá-lo em duas partes. A conclusão será publicada no próximo dia 31 de Dezembro, neste mesmo espaço horário – 9:00 horas. O primeiro mês desta rubrica – que irá chamar-se Contos & Crónicas – encerra, podemos dizer, com chave de ouro.

(Desenho de Dorindo Carvalho)

para o amigo António Simões dos Santos

que sempre esteve presente ao meu lado

 

 Pelas paredes da tarde desliza a luz incendiada do sol. Da atmosfera de junho desprende-se um calor seco e sufocante. Como que adormecidos os relógios suspenderam o movimento do tempo. Saltam da terra novelos de sonolência asfixiando a paisagem envolvente da Casa de Ceide.

Incurável, disse. Estes médicos novos não poupam os doentes. Quem ali esteve não foi um médico foi um avejão. Muita honra em conhecê-lo senhor Camilo. Conversa, treta, simpatia. Após a observação disse-lhe tudo sem réstia de esperança. Ainda não se conhecem meios para tratar essa doença

Camilo adivinhava há muito o diagnóstico. Uma coisa é adivinhar outra ouvir a verdade por quem sabe, ficar sozinho com a dor da certeza. Cego já está há muito! Praticamente só vê sombras. Quem lê os jornais, as cartas, os livros é ela. Quem escreve os textos é ela. Precisa dos olhos. Toda a gente precisa dos olhos mas ele precisa dos olhos para sentir e escrever.

A tarde está abafada, surda de calor. Não se ouve canto de pássaro nem ladrar de cão. Há um silêncio mórbido a escorrer pelas paredes da casa, silêncio povoado de assombrações de escárnio do seu drama. Fora! Fora! Puta que vos pariu! Fora! Pousa a mão sobre o tampo da escrivaninha, baloiça-se na cadeira. São escuros e feios estes diabinhos que dançam em seu redor atormentando-lhe o espírito. Voam por todos os cantos da sala como se nesse voar irrequieto e provocador o incitassem à loucura. Loucura ou sensatez? O corpo apela à sensatez do gesto, está podre e cansado de sofrimento.

No patamar de cantaria o médico despede-se da senhora viscondessa. Nada a fazer. Em pouco tempo ficará cego… Leve-o para o Gerês sempre distrai e o ar da serra dar-lhe-à tranquilidade. Ana não responde. Não existem respostas para verdades trágicas. Perante o inevitável as palavras perdem sentido, tornam-se desmembrados sons de dor e os sons de dor são tão íntimos e profundos que só o coração os escuta.

A caleche aguarda. As duas éguas sacodem as moscas. O médico desce os poucos degraus e toma o seu lugar. Ao grito do cocheiro a parelha arranca e sob uma nuvem de pó xistoso põe-se a desaparecer no horizonte.

A clareza da vida está na lucidez dos atos. Podem nem ser muitos, podem ser raros, pode ser apenas um único ato capaz de f0rnecer clareza a toda uma vida. Nada justifica, porém,  procurar razões antigas, interpretá-las, fazer penitência de pecados velhos. O passado é um rio de intenções fedorentas que suporta erros e frustrações das pessoas. Seria uma inutilidade mental mergulhar nesse rio, o presente encarrega-se, por vezes, de o tornar insuportável.

Respira mal, o estômago roubou-lhe o prazer alimentar, o fígado rabuja a cada cálice de Porto, os rins estão secos, as artroses prendem-lhe as pernas e deformam-lhe os dedos, os olhos murcharam e não têm estrelas, até os ouvidos estão surdos ao zurrar dos burros. Está azedo, inconformado, incapaz de manter diálogo com o seu corpo. Quando o corpo se transforma num monte de esterco nem sequer merece a nossa piedade. Por isso ninguém gosta de velhos, nem ele gosta de velhos, são presenças que escondem sob a indulgência da idade as putices que fizeram na vida.

A esperança é negra e quando a esperança é negra deixa de ser esperança para ser apenas um fio de ilusão. A autêntica esperança vinda de dentro como força da natureza é de cores quentes e sensuais que despertam alegria e vontade para ultrapassar os nossos desaires. Também pode vestir-se de cores frias, capazes de nos ajudarem a encontrar o amor e a paz, sossego para as interrogações que abrem caminho às mágoas da existência. A sua esperança não é nada disso, nem quente nem fria, reduz-se a um pavio que tremelica, exausto, no mundo espesso daquelas paredes, numa demencial chama de presságios. Os móveis, os objectos, os quadros, o retrato do Jorge, os tapetes, o bengaleiro onde pendem as cartolas, as tábuas do sobrado gemendo ao correr dos passos participam dessa atmosfera que faz da casa um reduto de clausura.

Camilo vagueia o olhar turvo pelo aposento mergulhado na semi-obscuridade que os resguardos interiores das janelas defendem da canícula. Tudo ali deixou de respirar, perdeu cor e formas, só ele respira mecanicamente como se já não fosse sua a consciência de existir naquele espaço. Inquieta-se, mexe-se na cadeira, vai buscar oxigénio ao fundo do mais fundo do peito. Resvala no sofrimento arrastando os segundos de uma decisão tomada faz tempo. A hesitação serve para prolongar o drama e enfraquecer a coragem. A mão fria de dedos esguios, parada sobre o tampo da escrivaninha, aguarda os últimos degraus do tempo.

 A vaga sombra projetada pela acácia do Jorge vinca a ossatura das janelas encerradas a fim de resguardarem a casa do calor desprendido da terra seca. A atmosfera comprime a paisagem tornando-a inerte. A luz aguda lapida a matéria de formas febris na tarde ausente de sons. Oh, este calor amarelo semelhante ao fogo do juízo final! Sobe do chão um sopro demoníaco procurando esconderijo entre eucaliptos. A igreja perfila-se adiante com as paredes brancas absorvendo a paz da solidão. O terreiro é campo tumular onde não assenta zumbido de voz, chiar de roda, voar de pássaro ou ladrar de cão. Repouso branco da natureza pingando no ar uma opressão de quietude imaculada. Horizonte de imagens graníticas a perdurar sobre a maldição do espírito de Pinheiro Alves.

Longínqua, traça-se em tom de chama a distante linha de um destino nascido em dia de infortúnio. Espírito rebelde, inconformado, sentindo na pobreza original a humilhação da personalidade tratou de se impor pelo talento da pena, a mordacidade audaciosa e provocadora de um caráter incapaz de se rever fora do seu egoísmo. Feio, bexigoso, magro, tocado por qualquer coisa sobrenatural levava a desgraça consigo num desafio permanente a esse malfadado destino.

A agonia de um destino é dolorosa. Marca a separação entre o percurso vivido e o acerto de contas com outro a viver. Todavia, a separação é imaginária pois a vida representa-se em um todo, sem um antes e um depois mas apenas um sempre absoluto no julgamento dos comportamentos. Quem os julgará? Onde haverá lugar à condenação dos atos de ser? Camilo nem receia o julgamento, se receio houvesse seria de si próprio e esse está há muito ultrapassado. Os outros, mesmo de Deus, são caminhos para uma trajetória onde a sua vontade prevalece. O único julgamento real é o seu! O cérebro que pensa, o sofrimento que cansa. A mão que escreve é a mão que executa. Essa mão parada como se pensasse, tomasse o fôlego de decisão. Mão esquálida, fria e descolorida, mão sofrida à procura do seu caminho.

Tudo só, tudo inerte na languidez da tarde. Ana sob a sombra pálida da acácia ficou a olhar o perder da caleche no horizonte. A sua figura alta, forte, de mulher enérgica, está presa da indecisão em encontrar respostas antecipadas à bateria de perguntas a que irá ser submetida. As ondas de calor inundam a atmosfera espalhando, naquele instante, uma premonitória angústia sobre cada segundo, lágrima de tempo interrompido pelo estampido seco de um tiro rasgando a tarde de alto a baixo. Relincham os cavalos na estrebaria, as cigarras suspendem o canto, os cães ladram na distância. Um fio de sangue corre pelos espaços do dia fazendo do som um cutelo que arranca de Ana o grito de alma (Camilo!) antes de desaparecer como uma sombra no interior da habitação.

Próximo da janela e da escrivaninha onde se encontra aberta a caixa das balas a cadeira de baloiço oscila num melancólico vaivém. Do perfil magro e anguloso do corpo destaca-se a cabeça tombada sobre o peito, os braços pendentes na direção do solo, os óculos a oscilarem presos pela fita que contorna o pescoço. Um fio de sangue desce da têmpora direita sulcando a face e perde-se através do farto bigode até acabar, absorvido, no cós da camisa. Uma das mãos (dedos longos e nodosos, estrangulados nas articulações), mãos belas dos artistas infelizes, segura ainda o revolver, objeto transportador das vozes ocultas infiltradas nos escombros da vida de um homem  de respiração quase imperceptível.

Ana relaciona tudo de imediato e precipita-se para a cadeira a mover-se, brandamente. para a frente e para trás. Liberta o pescoço do marido do lenço de seda, retira-lhe o colarinho e desabotoa o colete enquanto observa a gravidade do ferimento. Levem-no para o canapé! – diz numa voz aparentemente segura a dominar o movimento espantado dos criados que acorreram  ao som do disparo. Pegam-lhe no corpo ainda quente da vida que aos poucos se lhe vai soltando e com desvelados cuidados estendem-no no canapé. Conceição vai buscar um cobertor, Rosa trás uma botija com água quente para lhe aquecer os pés. Tu, Paulino, sela a Morgadinha e vai rápido a Famalicão chamar o médico. Ele que venha já!

O grande relógio da sala dá horas provocando um sobressalto no solitário murmúrio das rezas.

 Estão cumpridas as leis da tragédia que dominaram a tua vida. Escreveste o último capítulo do teu próprio romance., personagem entre imensos outros que criaste. Percorreste os anos alimentando a existência com as infelicidades da tua imaginação. Resististe a tanta desventura, a tanto sofrimento provocado a ti e aos outros, até chamares a morte para ela varrer os teus fantasmas. Cego, doente, intratável, partilhavas nesta casa as rabugices do sol da idade. Gritavas, incomodavas, exigias, procuravas impor a tua vontade embora sabendo que muitas vezes não era cumprida. Amor ou hábito? Ambos.

Tivemos tudo. Paixão, amor, hábito que tornaram suportável a nossa gesta comum. Acumulámos adversidades que nos amarraram a uma relação cujo segredo esteve na diferença dos nossos temperamentos.

Alguma vez tiveste paz? A tua vida foi um permanente sobressalto. Os teus casos de amor representam o tumulto de uma personalidade marcada por loucuras, fraudes, fatalismo e remorso passado aos livros. Não escrevias. Pensavas, sentias, falavas, confundias a tua realidade com a dessas figuras de negros destinos acariciadas nas folhas dos teus livros.. Foi tempestuosa a paz a teu lado. Difícil compreender essa personalidade mergulhada nos abismos de um conflito interior que só tu conhecias. Contudo, eras o meu homem, o meu marido, pólo de sobrevivência da memória, consciência da minha paixão (Paixão, disse ela. Mas foi paixão de amor… de amar… Há quanto tempo não conjugávamos o verbo amar? As palavras envelhecem connosco e perdem a alegria… Não só as palavras… as cores, os sons, os gestos. Tornaste-te gorda, opulenta. As lunetas na ponta do nariz e a papada a esconder o pescoço. É tudo vago e longínquo. Há ruídos na casa, vozes de veludo. Está escuro Ana, muito escuro. Onde está o nosso Jorge? São bonitas as suas pinturas. Não façam mal ao Jorge ele é tão cego do juízo como eu dos olhos).

1 Comment

  1. *Triste fim para um homem de talento .*

    *Li quase todas as obras ,talvez para desafiar as freiras do colgio -tive a sorte de duas sobrinhas netas terem sido minhas colegas com quem sempre me relacionei muito bem -enfim ,tb foram vidas sem rumo -Maria *

Leave a Reply