PENSAR DIFERENTE, IMPACTOS HUMANITÁRIOS DA CRISE ECONÓMICA NA EUROPA – UM RELATÓRIO DA CRUZ VERMELHA INTERNACIONAL E DO CRESCENTE VERMELHO (EXCERTOS).

Selecção, tradução, organização e introdução por Júlio Marques Mota

IFRC-logo

Pensar diferente, impactos humanitários da crise económica na Europa

Um relatório da Cruz Vermelha Internacional e do Crescente Vermelho (excertos)

PARTE IV
(CONTINUAÇÃO)

Espanha: em baixo, mas não ainda no fundo

Naturalmente a situação tornou-se muito mais difícil agora, “diz José Javier Sánchez Espinosa, o director-adjunto do departamento de inclusão social da Cruz Vermelha espanhola, falando em trazer de volta para a sociedade em geral as pessoas vulneráveis que a crise excluiu.

“Sempre foi um grande desafio, mas quase 50 por cento das pessoas que participam no nosso programa de emprego conseguiram arranjar um emprego. Esta era a situação em 2009, agora estamos numa percentagem bem abaixo, em redor dos 30 por cento e claramente a situação tornou-se bem mais difícil. “Mas não é impossível, acrescenta. A Cruz Vermelha de Espanha manteve a sua abordagem holística para ajudar os necessitados, embora o número de pessoas que participam no programa de inclusão social tenha aumentado de 900.000 pessoas em 2008 para mais de 2,4 milhões em 2012.

“Nós sempre nos esforçamos por fazer mais do que fornecer ajuda; nós tentamos envolver as pessoas na procura de soluções para si-mesmas, levar a que as pessoas se envolvam na formação ou no ensino ou ainda como voluntários para que se mantenham como cidadãos activos, não como seres passivos, simples beneficiários da ajuda,”, diz José Espinosa.

“Antes da crise, tínhamos a mesma abordagem para ajudar os pobres e os sem-abrigo. Como o número de pobres cresceu – conjuntamente com os números do desemprego – então deparamo-nos com muito cepticismo quando realizamos as primeiras sessões de trabalho, workshops, ou seminários destinados aos novos grupos de pessoas. Isso é natural, uma vez que a situação do país se tornou tão grave mas então também falamos sobre quais são as opções e os resultados possíveis de uma forma muito realista.

A abordagem holística para cada pessoa ou família que precisa de ajuda é estabelecida após o preenchimento do “questionário social” utilizado pelos funcionários da Cruz Vermelha de Espanha, presentes na reunião inicial. O questionário considera todos os aspectos e questões – comida, remédios, casa, escolaridade, finanças – e torna mais fácil planear que tipo de assistência é que cada família ou pessoa precisa.

“Nós também acompanhamos com toda a gente aquilo a que se tem apoiado anualmente e nós utilizamos os resultados e os dados para criar o nosso próprio relatório anual sobre a vulnerabilidade social. O nosso relatório de 2012 mostrou que a situação era pior do que em 2011, e novamente este ano revela-se que a situação continua a piorar” diz José Espinosa.

Da pobreza para a exclusão

O levantamento também mostrou que mesmo quando um país consegue superar o pior da crise, os efeitos serão sentidos ao longo e por muitos anos vindouros.

A Islândia é um exemplo, onde a Cruz Vermelha lidou com a situação no modo’ desastre’ (ver caixa na p. 54), mas agora está a enfrentar o problema de falta de rendimento e o da desvalorização da moeda, enquanto a Cruz Vermelha na Letónia, um país reconhecido por ter superado a crise, está ainda a ser distribuído alimentos para 140.000 pessoas, ou seja 3,5 vezes mais do que em 2009.

A Cruz Vermelha francesa informou que as pessoas em França estão cada vez mais a deslizar de uma situação financeira precária, mas estável, para uma situação financeiramente vulnerável, passando de uma situação de vulnerabilidade para uma situação de pobreza e da pobreza para a exclusão social. Parece estarmos perante uma tendência geral de degradação da situação económica e social nos sectores mais desfavorecidos da sociedade francesa, onde mais 350.000 pessoas vieram a cair abaixo da linha da pobreza desde o ano de 2008 até ao ano de 2011. Infelizmente, o forte crescimento de pessoas em situação de necessidade está-se a verificar numa altura em que o financiamento público se está a reduzir .

ITÁLIA

Itália: os sem abrigo tornou-se um fenómeno em sentido único

“Nós já vimos que aqueles que eram pobres ficaram ainda mais pobres. Famílias com crianças e apenas com um só rendimento encontram-se numa situação precária; muitas vezes quase todo o seu rendimento é gasto no aluguer da habitação e para o pagamento dos serviços públicos associados” explica Giorgio Bocca, que trabalha em Milão para a Cruz Vermelha italiana no apoio e na inclusão social de pessoas vulneráveis.

“Se perdem o emprego, dentro de muito pouco tempo deixam de poder fazer pagamentos para satisfazer as necessidades humanas mais básicas.”

Apesar ter sido dada muita atenção aos ‘novos pobres’, a Cruz Vermelha italiana tem visto um número sempre a crescer de pessoas que foram anteriormente colocadas à margem da sociedade e que têm sido empurradas pela borda fora pela crise económica. O número de gente a ficar sem abrigo, a ficar com o “estatuto” de sem-abrigo, está claramente a crescer e muitos estão a deparar-se com dificuldades para comprar as necessidades ainda básicas, incluindo os alimentos.

A Cruz Vermelha italiana criou quatro unidades especiais em Milão – “Unità di Strada” – para trabalhar com os sem-abrigo. As equipas estão especialmente activas durante o inverno, operando não só a partir das 21 horas da noite até à uma hora da manhã no Inverno mas também durante os meses mais quentes do verão. Estas equipas trabalham em conjunto com outras organizações, bem como com a Câmara Municipal. Todas as pessoas que elas ajudam têm uma coisa em comum –não conseguem encontrar trabalho.

Estes voluntários da Cruz Vermelha estão a verificar que muitos daqueles que estão a ajudar numa base regular estão a começar a perder a esperança de voltarem a ter uma vida normal. “Eu vim da Ucrânia, porque no meu país, não há empregos,”, diz Olga, que agora dorme no duro no centro de Milão. Olga costumava trabalhar como assistente de cuidados de hospital durante a noite, mas mesmo até os empregos temporários são cada vez mais difíceis de encontrar, explica.

Crianças em risco

As crianças de famílias pobres são especialmente vulneráveis. Estudos recentes conduzidos por Save the Children na Inglaterra mostram que as crianças em situação de pobreza não têm férias de verão, não fazem viagens escolares, não têm casacos de inverno quentes, não têm sapatos novos ou roupas novas quando crescem, fora dos entes queridos e nem sequer sabem estar com os amigos. Cerca de 12 por cento dos pais envolvidos nestes estudos disseram que os seus filhos regularmente vão para a escola sem uma das refeições diárias. Um em cada quatro pais admitiram mesmo que eles próprios falham refeições ou então fazem-nas em quantidades menores para esticar ainda mais a comida.

A pobreza pode atingir as crianças. Estas podem mesmo culparem-se a si-mesmos e sentirem-se culpados se eles pressentem que os seus pais estão a deixar de ter qualquer coisa por causa deles.

As crianças de famílias pobres são uma preocupação especial para muitas organizações nacionais da Cruz Vermelha na Europa. A continuação da sua educação é apoiada por grupos de ajuda nos trabalhos de casa e pelo fornecimento de merenda escolar, bem como a tentar aumentar a sua tolerância e a querer evitar a exclusão social.

Muitas organizações nacionais da Cruz Vermelha organizam acampamentos de verão para as crianças; devido à crise, algumas tiveram que cortar as suas actividades. Outras têm aumentado o número de tais campos, mas ainda não conseguem acomodar todos aqueles que têm sido indicados pelas autoridades sociais e por outras organizações.

“Os não-italianos, sejam eles oriundos ou não da União Europeia encontram aqui uma situação difícil. Eles vêm para trabalhar, mas se eles caem na pobreza, outras pessoas sem abrigo sentem que eles os enganam, retirando-lhes deslealmente oportunidades de trabalho ou até mesmo locais de abrigo,” dizem-nos.

Enquanto a pobreza aumentou, os serviços sociais têm estado a ser reduzidos. Os donativos públicos de cobertores e comida também caíram acentuadamente. A Cruz Vermelha italiana tem feito o seu melhor: em Milão, 50.000 pessoas recebem ajuda alimentar através da Cruz Vermelha graças a fundos europeus – arroz, massa, queijo, biscoitos, leite e cereais – no entanto, também existem muitos mais em situação de necessidade.

“Os idosos estão entre os mais afectados,” disse Manuela Locatelli, uma trabalhadora da equipa da Cruz Vermelha na zona leste de Milão. ” Muitas vezes estes não têm dinheiro para comprar mantimentos e têm vergonha de ir para as cantinas públicas da sua área. Nos vemo-los no mercado no final do dia, a tentarem comprar os seus alimentos com alguns euros que eles ainda têm, ou mesmo a apanharem os restos das caixas .”

As pessoas estão a tentar reduzir os gastos sempre que possível, sabendo que quanto mais eles deslizam para a pobreza, mais difícil será para eles voltar à situação anteriormente tida . “Desde que os benefícios sociais do governo foram cortados, o apoio que nós fornecemos é essencial,”, diz Marco Tozzi, um voluntário da Cruz Vermelha que se concentra nos casos sociais mais complexos. ” Os serviços públicos pura e simplesmente não respondem às necessidades sempre crescentes – a cidadania activa em conjunto com mais programas de voluntariado social são apenas um começo”, acrescenta.

(continua)

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