UM HOMEM A AFRONTAR O REGIME A PROPÓSITO DO ABORTO – A TESE DE ÁLVARO CUNHAL por clara castilho

9349741_b7nUl

Não posso estar a falar sobre interrupção voluntária da gravidez, habitualmente chamada “aborto” sem falar da tese de licenciatura do 5.º ano jurídico na Faculdade de Direito de Lisboa de Álvaro Cunhal, em Julho de 1940, contava ele 26 anos.

Pela provocação, pela ousadia, pela inovação. Lida há luz da actualidade, há quem considere que até nem estará muito bem feita. Mas situemo-nos: Cunhal tinha sido preso pela PIDE em Maio de 1940 e entre a documentação então apreendida encontrava-se um exemplar dactilografado da sua tese, não revisto nem finalizado. Foi difícil recompor o que tinha preparado. Mas tinha a ideia do que queria defender, isso sim. Classificava o aborto clandestino em Portugal como “um flagelo”.

avarezas-de-paula-rego-9b91

 

Paula Rego

Novamente preso, foi em consequência de um forte movimento de solidariedade que foi  autorizado a ir a exame, escoltado, tendo-se apresentado  perante um júri composto por célebres personalidades do fascismo. Obteve a classificação de  16.

Há um autor que relata este episódio: Alexandre Babo no livro Recordações de um Caminheiro, editado pelas edições Escritor em 1993:

«Não me esqueço por ser dia grande na Faculdade de Direito (…). Toda a esquerda portuguesa da oposição a Salazar, a chamada “inteligenzia”, lá estava. O Álvaro Cunhal, preso e incomunicável há mais de três meses, fora autorizado a prestar as suas provas de licenciatura e toda aquela gente ali estava para o saudar. (…) Sentado frente à cátedra, respondendo de igual para igual perante o juiz do Supremo Tribunal que presidia ao exame, ladeado pelo melhor que havia na Faculdade – o Marcelo Caetano, o Pinto Coelho, o Caeiro da Mata e o recém-catedrático Cavaleiro Ferreira, figura sinistra do fascismo, criador das famigeradas “medidas de segurança”».

Cunhal não deixou de referir que as mulheres de mais alta condição  podiam praticar o aborto com o auxílio de médicos especializados em clínicas apropriadas.  Ressaltou as consequências para a saúde para as mulheres que o praticavam em más condições: as hemorragias, inflamações do útero ou doenças permanentes, a incapacidade de trabalho durante meses ou anos e mesmo a esterilidade e, por vezes, a morte. Era a miséria e a péssima situação económica das classes trabalhadoras, o desemprego que levava estas mulheres a fazê-lo, para não trazerem ao mundo outro ser que viesse a sofrer as mesmas condições.

Na tese falava daquilo a que chamava uma «experiência brilhante: a legalização do aborto na URSS», desde 1920. Para além disso, questionava, de que servia a criminalização do aborto (que só atingia as classes trabalhadoras) se não alteravam as suas verdadeiras causas? Lembrava a mortalidade infantil que era, em 1941, a mais elevada da Europa.

Em posts anteriores abordámos a legislação existente. Mas lembremos só que, na altura da defesa desta tese, o aborto era considerado crime desde 1886,  a Constituição de 1933 ressalvava, quanto às mulheres, as «diferenças da sua natureza e do bem da família» e que à mulher era ainda vedada a possibilidade de, sem autorização do marido, adquirir e alienar bens ou contrair obrigações, publicar escritos ou apresentar-se em juízo.

A tese foi publicada em 1997 pela Campo das Letras. Seja como for, um acto de coragem. De um homem. Não um homem qualquer, mas um homem que passou a vida a opor-se à ditadura.

1 Comment

  1. Aborto é o produto que resta da prática do abortamento. Se o Cunhal usou a palavra aborto para designar o abortamento, então, devia ter reprovado.CLV

Leave a Reply