ILHA DE KIUSHU – por Fernando Correia da Silva

Um Café na Internet

 – Como foi isso, ó Fernão Mendes Pinto?

– Passou-se na ilha de Kiushu e corri grande perigo. Os desta terra, para quem este modo de tiro de fogo foi cousa que até então não tinham visto, tamanho caso fizeram disso, que o não sei encarecer. O segundo filho de El-Rei, por nome Arichandono, moço de dezasseis até dezassete anos, e a quem ele era muito afeiçoado, me requereu algumas vezes que o quisesse ensinar a atirar, de que me eu escusei sempre, dizendo que havia mister muito tempo para o aprender. Porém ele não aceitando esta minha razão, fez queixume de mim a seu pai, o qual, pelo comprazer, me rogou que lhe desse um par de tiros para lhe satisfazer aquele apetite; a que respondi que dois, e quatro, e cento, e quantos sua alteza mandasse. E porque ele neste tempo estava comendo com seu pai, ficou para depois que dormisse a sesta, o qual ainda aquele dia não teve efeito porque foi aquela tarde com a rainha sua mãe a um pagode de grande romagem, onde se fazia uma festa pela saúde de El-Rei. E logo ao outro dia seguinte, que foi um sábado, véspera de Nossa Senhora das Neves, se veio pela sesta à casa onde eu estava sem trazer consigo mais que só dois moços fidalgos, onde me achou dormindo sobre uma esteira; e vendo estar a espingarda pendurada, não me quis acordar, com propósito de tirar primeiro um par de tiros, parecendo-lhe, como ele depois dizia, que naqueles que ele tomava não se entenderiam os que lhe eu prometera. E mandando a um dos moços fidalgos que fosse muito caladamente acender o morrão, tirou a espingarda donde estava, e querendo-a carregar como algumas vezes me tinha visto fazer, como não sabia a quantidade de pólvora que lhe havia de lançar, encheu o cano em comprimento de mais de dois palmos, e lhe meteu o pelouro, e a pôs no rosto e apontou para uma laranjeira que estava defronte; e pondo-lhe o fogo, quis a desventura que arrebentou por três partes, e deu nele, e lhe fez duas feridas, uma das quais lhe decepou quase o dedo polegar da mão direita, de que o moço logo caiu no chão como morto, o que vendo os dois que com ele estavam, foram fugindo caminho do paço, e, gritando pelas ruas, iam dizendo: “A espingarda do estrangeiro matou o filho de El-Rei!”.

– É essa má sorte que te persegue sempre… E depois?       

– Levantou-se um tamanho tumulto na gente, que toda a cidade se fundia, acudindo com armas e grandes gritas à casa onde o pobre de mim estava, e já então qual Deus sabe, porque acordando eu com esta revolta e vendo jazer o moço no chão junto de mim, ensopado todo em sangue, sem acudir a pé nem a mão, me abracei com ele já tão desatinado e fora de mim, que não sabia onde estava. Abreviando: a minha sorte foi o moço acordar e apontar para mim, dizendo a seu pai: “Se o matarem, eu morro outra vez”.

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