TRADUTORES, GNOMOS INVISÍVEIS – por Carlos Loures

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Temos falado de autores, de editores, de leitores… Para que uma obra vá da nascente à foz, do autor ao leitor, há um elemento insubstituível – o tradutor. É dele que se ocupará o artigo de hoje.

Um romance que li há tempos, sugeriu estas reflexões sobre uma profissão do livro – a de tradutor.. Não direi qual o livro, pois isso poria em cheque o tradutor. Apenas refiro um pormenor. Na obra alude-se repetidamente a um sótão que, pela descrição, se situa no subsolo. Como o livro é traduzido de um original norte-americano, a confusão seria entre «attic», «loft» ou «garret» e «cave» (verifiquei, compulsando o original, que a palavra usada foi «cave»). Embora não fosse exactamente o que se pretendia, a palavra portuguesa «cave» serviria razoavelmente, não se verificando o clássico problema dos «falsos amigos» – mas o termo mais rigoroso seria talvez «caverna».

Gnomos invisíveis foi como aqui designei os tradutores. E expliquei – gnomos invisíveis porque um bom tradutor, tal como um árbitro, não dá nas vistas. O que se lhe pede não é que melhore o texto original, mas sim que o respeito e procure no seu idioma aproximar o texto  da tradução tanto quanto possível do original. Quem tem a presunção de melhorar o texto original, não serve. Se é tão bom escritor, que escreva os seus livros e não tente melhorar os alheios. Temos excelentes tradutores, gente que domina bem, quer a língua de partida quer a de chegada. Porém, o mercado de trabalho está inflacionado de tradutores, excelentes, bons médios,  maus e mesmo de falsos tradutores.

Sei em que circunstâncias muitas vezes as traduções são feitas. Prazos exíguos, pagamentos parcos e ainda por cima incertos. Até há duas décadas atrás, as traduções eram geralmente pagas à página (30 linhas de 70 caracteres = 2100 caracteres). Hoje, com o trabalho feito em processador de texto, usa-se mais como unidade de referência os conjuntos de 2000 caracteres. Mas, de uma forma geral, continua a ser um trabalho mal pago. Isto, quanto a mim, não desculpa que se façam as traduções que por aí aparecem.

Voltando ao problema do sótão no subsolo. Como é que uma caverna subterrânea aparece transformada num sótão? Muito simples: a tradução não foi feita do inglês, como expressamente se indica na ficha técnica, mas sim do castelhano. Em castelhano, cave diz-se «sótano» e «sótano» – está-se mesmo a ver, não está? – só pode ser sótão! Temos, portanto, um tradutor que por ignorância ou preguiça substitui o original por uma tradução espanhola, mas que não sabe castelhano (o português da tradução é razoável e, por vezes, bastante bom). E que não reflecte sobre o que está a traduzir, pois num dos capítulos fala-se numa escada quase interminável que «desce até ao sótão». Exemplos de más traduções e de trapaças como esta são às centenas.

Por tudo o que fica dito e pelo muito que aqui não cabe dizer, se entende como é difícil traduzir. E como é difícil avaliar traduções, pois já tenho deparado com traduções globalmente mal feitas onde há problemas muito bem resolvidos. O contrário também acontece. Já referi o erro de tradução que mais consequências teve – o da tradução do Novo Testamento em que as palavras  jovem e virgem são confundidas e dá lugar ao culto mariano (Concílio de Trento). Há um outro case study  – uma tradução de Sigmund Freud no seu ensaio  Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. E aqui trata-se menos de um erro do que uma leve traição (traduttore, traditore) – Freud traduz a palavra italiana nibio (milhafre, falcão) pela alemã Geier (abutre). Aves diferentes e com conotações antropomórficas e filosóficas diferentes. Na roupagem de Maria no quadro A Virgem e o Menino com Santa Ana identifica-se a figura de um abutre e não a de um falcão. É também importante porque, com base em hieróglifos egípcios, faz-se relação entre mãe e abutre. Nos hieróglifos egípcios – nos quais ideias são expressas por meio de objectos desenhados – a mãe era representada como abutre. Com o falcão, o texto perderia parte de seu encanto e sentido filosófico. Freud deu um jeito…

2 Comments

  1. A acrescentar a esta justa chamada de atenção para os tradutores, lembrar obras traduzidas por alguns dos nossos grandes escritores e poetas. Às vezes fico espantada, quando vou ver de quem é a tradução. Será sinal de maior qualidade?

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