SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA – 11 – Breve introdução ao reintegracionismo linguístico galego – (I) – por Carlos Durão

O alvo do movimento cívico dito reintegracionismo é reintegrar as falas galegas do norte da Raia galego-portuguesa (e leste da Comunidade Autónoma da Galiza, nas comarcas limítrofes do chamado galego estremeiro) no seio da língua inicialmente galaico-portuguesa e hoje internacionalmente conhecida como portuguesa: reconstituir enfim a unidade da língua nada na velha Galécia dentro do espaço da Lusofonia. Não trata de reunificação política mas linguística.

 A unidade linguística da faixa atlântica da Ibéria (o iberorromance ocidental, na terminologia do professor R. Carvalho Calero) foi de sempre reconhecida, aberta ou tacitamente, pela maioria dos linguistas que se debruçaram sobre esta questão. Contudo, é fácil constatar hoje uma atitude oficial reticente, quando não abertamente hostil, por parte das instituições docentes e académicas do Reino de Espanha e da República Portuguesa. Então por que só tacitamente reconhecida em muitos casos? Será que a caracterização de “galego” e de “português” é política e não linguística?

 Com efeito, sabemos que a língua falada (pelo povo e pelos “barões”) no primitivo Condado Portucalense era a mesma que se falava em todo o território antigamente conhecido com o nome de Gallaecia, ou Galécia, depois Galiza. A língua já estava feita, não nasceu ali ex nihilo. Sim recebeu depois nas chancelarias o nome de português; mas até então tinha denominações diversas, que se podem rastejar nos documentos da época: umas gerais e simples (romanço, linguagem, lenguagem, nossa linguagem), outras mais concretas (gallaeco vocabulo, littera galleca, lingoajen galego, lĩguagem de Portugal): as primeiras faziam distinção entre o latim e a fala vernácula; as segundas começavam a distinguir segundo o território ou a etnia.

 A língua galego-portuguesa das cantigas não era própria da Galiza nem de Portugal, mas ambos a tiveram sempre por sua, não se podendo determinar em muitos casos a origem dos trovadores, como bem testemunhava M. Rodrigues Lapa: “Uma das grandes dificuldades para quem se ocupa dos trovadores é e continua a ser a determinação dos seus lugares de origem, da sua pátria, digamos, no fraseado de hoje, que não correspondia ao de então. É, em muitos casos, uma tarefa vã; e isso mesmo tem um significado lisonjeiro, porque revalida a ideia de uma perfeita identidade entre as duas Galizas, a de além e a daquém Minho” (1952, I: 9).

 Quanto ao povo, ele nunca reconheceu qualquer fronteira política entre o Estado Espanhol e o Estado Português, e continua a denominá-la simplesmente “a Raia”: ou seja a do rio Minho ou, mais a leste, a Raia Seca, ambas tradicionalmente abertas nas feiras e romagens, mesmo nas épocas mais isoladas das ditaduras em ambos Estados.

 Costuma dizer-se que o berço da língua abrange o noroeste peninsular até ao Vouga, ou também usque ad Mondecum, como dizia Rodrigues Lapa; e mais concretamente: do Návia ao Mondego; mas igualmente se poderia dizer: do Mondego ao Mondego, pois também existe este topónimo bem ao norte da Galiza, como tantíssimos outros topónimos que nos são comuns: e este é um ponto acertadamente assinalado por Rodrigues Lapa: “todo Portugal é mais ou menos galego.  A toponímia demonstra-o claramente” (1985, 4/5: 39-40)

 E a este respeito diz-nos a o linguista romeno E. Coseriu: “Trata-se, por tanto, do caso, bastante raro na história das línguas, de uma língua que, precisamente na forma que se difunde e se constitui em língua comum e grande língua de cultura, chama-se com outro nome: já não galego, mas português.” (1989, II: 800); e também: “existem em cada língua oposições constantes e peculiares, tanto entre as invariantes quanto entre variantes normais, com a diferença de que as oposições entre invariantes são funcionais, enquanto que as oposições entre variantes não têm esse carácter, mesmo não sendo nem indiferentes nem arbitrárias na língua dada” (1979: 54)

 A independência determinou que cedo os gramáticos portugueses começassem a ignorar a realidade galega subsistente, atribuindo certos traços da língua, que eles percebiam como mais antigos ou “arcaicos”, ao entre Douro e Minho ou à Beira; assim: Fernão de Oliveira, João de Barros, Duarte Nunes de Leão.

 Mas na Galiza a língua deixou de ser a das chancelarias e da igreja: essa começou a ser então a castelhana, que foi penetrando no país à medida que este ia caindo na órbita de Castela, sendo finalmente anexado pelos chamados Reis Católicos: parte da nobreza galega aceitou a nova situação subordinada, e outra parte emigrou, a Portugal ou a outras partes.

 Nos séculos seguintes (os chamados “séculos obscuros”), a língua manteve-se principalmente nos beiços do povo, e só depois do Ressurgimento literário (“o Rexurdimento”) do século XIX se começou a entrever o passado galego-português comum nos Cancioneiros medievais, e então a se constituir paulatinamente o reintegracionismo, já defendido pelas Irmandades da Fala (1916), pelos membros da Geração Nós (1920), e do Seminário de Estudos Galegos (1923), como também pela revista A Nosa Terra e a revista NÓS.

 Cabe aqui mencionar que, entre os que reconheceram abertamente essa unidade, podemos citar, na Galiza: o Pe. Feijó, o Pe. Sarmento, Manuel Murguia, Vicente Risco, A. Vilar Ponte, Rafael Dieste, E. Correa Calderón, R. Otero Pedraio, J. V. Viqueira, A. R. Castelão, V. Paz-Andrade, R. Carvalho Calero, J. Marinhas.

Em Portugal: Leite de Vasconcelos, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Lindley Cintra, Alexandre Herculano, Teixeira de Pascoaes, M. Rodrigues Lapa, Ma. Helena Mira Mateus, Agostinho da Silva, Malaca Casteleiro, Amadeu Torres, Fernando Cristóvão, Fernando Venâncio.

 No Brasil: Evanildo Bechara, G. Chaves de Melo, L.A. de Azevedo Filho, Sílvio Elia, Marcos Bagno, C.A. Faraco, J. C. Barreto Rocha.

 Na Catalunha: J. Coromines, Ll. Aracil.

 A chamada Guerra Civil da Espanha matou aquele agomar, mas no exílio escreve E. Guerra da Cal os seus seminais poemários Lua de Além-Mar e Rio de Sonho e Tempo (1959/1963), iniciando assim o reintegracionismo contemporâneo. Diz-nos ele:

 “Eu, sem pejo nenhum, afirmo aqui o meu orgulho de ter sido o primeiro escritor galego, desde o Ressurgimento, a levar a vias de facto essa tão repetidamente desejada aproximação da nossa língua escrita ao português […] Em 1959 fui de facto “iniciador dessa reintegração” no meu poemário Lua de Alén-Mar, com o que abri fogo nessa batalha […] Esse apelo não caiu em saco roto. Nele teve princípio a corrente “reintegracionista” contemporânea – na que hoje enfileira o melhor e mais capacitado da nossa mocidade. […] os que neste momento detêm o poder autonómico – clientes e agentes do Estado Central […] Esse é o bando da “Xunta de Galicia” [sic], que, de colaboração com algumas entidades “isolacionistas” esclerosadas, engenhou e “oficializou”, de maneira maleficamente subreptícia, umas aberrantes Normas cujo evidente propósito é condenar o galego ao languidescimento como dialecto – do espanhol […] eu tenho a convicção de que a única defesa do galego contra a política linguicida dos “espanholizantes” descansa na progressiva adopção do padrão luso-brasileiro que os “reintegracionistas” perfilham”. (1985.1986, II: 9-11)

(Continua)

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