COMO SE MATA UM PRESIDENTE -18- por José Brandão

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No rescaldo desta agitação, as prisões ficam atafulhadas com milhares de prisioneiros, podendo dizer-se como Cunha Leal nas suas Memórias — que foi integral a razia do escol do PRP.

Entre os republicanos presos nesta altura, figurava Francisco Correia Herédia, mais conhecido por visconde da Ribeira Brava o qual, dentro de quatro dias, seria vítima de um dos mais horrorosos crimes perpetrados durante o consulado de Sidónio Pais. Passou-se isso no dia 16 de Outubro de 1918, tendo tal facto ficado conhecido para a posteridade como o crime da «Leva da Morte».

Eram 3 horas da tarde quando a tragédia começou a delinear-se. Nos calabouços do Governo Civil de Lisboa já não cabia mais gente. Os prisioneiros quase asfixiavam, amontoados aos cinquenta onde mal se ajeitariam vinte.

As autoridades decidem transferir grande parte deles para as celas dos fortes do Campo Entrincheirado, designadamente para a torre de S. Julião da Barra, Alto do Duque e Caxias.

O embarque no comboio especial que, inicialmente, deveria sair do Cais do Sodré por volta das 18 horas, é adiado para as 21 horas, por motivo de a companhia que explorava a linha de Cascais só poder dispor do comboio especial a essa hora.

Ao princípio da noite começa a chamada dos presos que irão ser transferidos. Um a um, vão-se acumulando no vasto pátio central do Governo Civil, cercado por guardas de espingarda em descanso.

Aos ouvidos dos presos já tinham chegado rumores de violências e sinistras maquinações.

Enquadrados por 270 guardas armados e equipados para a escolta, os 153 prisioneiros partem, à voz de comando dos chefes Alves Dias e César Couto.

Estranhamente, o cortejo é aberto por um grupo de corneteiros e tambores que vão marcando a localização da cabeça da formatura dos prisioneiros. Nela se destaca, na primeira linha, o vulto hercúleo do visconde da Ribeira Brava, sexagenário na idade mas ainda forte e destemido na audácia combativa.

Era mais uma das muitas prisões que este dedicado combatente da República estava a sofrer. Desde os tempos da velha Monarquia que conhecia as amarguras da vida nas prisões. Várias vezes estivera preso nas masmorras da realeza, algumas delas juntamente com Afonso Costa e com outros republicanos de vulto.

Nascera na ilha da Madeira, em 1852, e aos 19 anos recebera das mãos do rei D. Luís o título de visconde da Ribeira Brava, sua freguesia de nascimento.

Começou a sua carreira política nas fileiras do Partido Progressista, do qual se viria a afastar aquando da dissidência chefiada pelo conselheiro José Maria de Alpoim. Foi deputado ainda sob a Monarquia e mostrou-se um inabalável combatente contra o Governo ditatorial de João Franco. Não hesitou em tomar parte em quase todos os movimentos revolucionários com vista à implantação da República. Veio a filiar-se no PRP chefiado por Afonso Costa, voltando ao Parlamento como deputado republicano e não teve qualquer problema em deixar de usar o título nobiliárquico de visconde, passando a assinar unicamente como Francisco Correia Herédia Ribeira Brava.

Era este homem que seguia à frente da leva de presos neste dia negro de 1918.

Atrás dos estridentes corneteiros marcha um troço de guardas, armados, de espingarda à cara, apontando para as janelas e de mira direita aos curiosos que correm ao chamariz das cometas e dos tambores.

— «Fechem as janelas! Janelas fechadas! Afastem-se das ruas!» — são os gritos que se ouvem proferidos a todo o instante pela guarda que conduz a coluna.

De repente, quando já todos os prisioneiros se encontravam na Rua Serpa Pinto e os da frente alcançavam o cruzamento da Rua Vítor Córdon, ouviu-se um tiro.

O pânico apodera-se da coluna e no meio da enorme confusão desencadeia-se um tremendo tiroteio, podendo ver-se os guardas a disparar a torto e a direito, conforme tinham as suas armas viradas.

Desvairada, a Polícia só pára de disparar quando o chão é já um tapete de mortos e de feridos que agonizam pela calçada.

Seis presos encontram-se entre os sete mortos.

Um polícia fora morto, provavelmente pelos próprios disparos dos colegas. Os feridos são sessenta, trinta e um entre os presos e vinte e nove entre os polícias da escolta.

Na calçada, junto à valeta da esquina da Rua Vítor Córdon, jazia o cadáver do visconde da Ribeira Brava. Tinha a barba horrivelmente ensopada em sangue. Apresentava a laringe cortada, decerto por um golpe de baioneta.

Mais tarde, a autópsia que a família requerera judicialmente revelará ferimentos causados por cinco balas, uma das quais «tão à queima-roupa que lhe fendeu o frontal».

 

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