FRATERNIZAR – SALMO 22 – por Mário de Oliveira

001Parecem abutres esfaimados contra mim (in Pe. Mário de Oliveira, O LIVRO DOS SALMOS)

Nota prévia

Este é, porventura, o SALMO que melhor me diz, desde há anos, em que o Poder instituído, do sacerdotal-elesiástico ao financeiro, faz tudo para me matar de solidão e de desprezo.

Até as suas inúmeras vítimas se lhe juntam, deixam-me só e desprezam-me, como ele. Porque preferem o prato de lentilhas que ele lhes dá, de quando em vez, à autonomia e à liberdade.

1 Do fundo de mim, solta-se o grito, Meu Deus, meu Deus, por que me abandonas? Porque não dou pela Tua presença, nem tão pouco pelo cálido apoio da Tua mão? 2 Clamo todo o dia por Ti; faço o mesmo, durante a noite. Só o Teu mais completo silêncio me responde e rodeia. 3 No entanto, Tu és o Sopro vivificador que me mantém de pé; o Teu silêncio e a Tua ausência são sucessivos apelos Teus, a vivermos na história, como se Tu não existisses. 4 Por Te confundirem, Deus Abba-Mãe, com o todo-poderoso, os nossos antepassados sempre se levantaram, armados, contra faraós e outros tiranos, na ilusão de que acabarias por intervir, armado, ao lado deles, para os levares à vitória. 5 Só com Jesus, o Teu Filho muito Amado, aprendemos que o Teu silêncio e a Tua ausência são para tomarmos a palavra, crescermos de dentro para fora, e cuidarmos maieuticamente uns dos outros e do planeta. 6 Os poderosos não me perdoam esta consciência outra, que desenvolves em mim, e tratam-me como um verme. 7 Quantas, quantos dizem com eles, meneiam a cabeça e escarnecem-me sempre que passam por mim,. 8 Dizem, Quer ser mulher, homem livre, autónoma, autónomo, sem a tutela das hierarquias e até sem a tutela de Deus? Que a liberdade e a autonomia lhe valham e protejam!… 9 Eu sei que Tu, Deus Abba-Mãe, sofres comigo este desprezo. Diz-mo já o leite da minha mãe, eu ainda menina, menino. 10 É dela que nasço, mas sou Tua filha, Teu filho, e até os cabelos da minha cabeça estão todos contados. 11 Se ainda Te grito por socorro, é só para afugentar de mim a tentação da idolatria; e nunca por nunca, trocar a liberdade pelo prato de lentilhas dos poderosos. 12 Vejo-me, a toda a hora, rodeada, rodeado de temíveis touros em fúria; todas as bocas repetem-me os mesmos desprezos. 13 Parecem abutres esfaimados contra mim, sem ninguém que tenha piedade e me estenda a mão, um gesto amigo e solidário. 14 Estou a ser derramada, derramado como água em vaso furado, e nenhum dos meus ossos se mantém no lugar. 15 Quero defender-me, mas minha garganta é barro cozido, e minha língua, chumbo colado ao céu-da-boca. 16 Estou rodeada, rodeado por matilhas de raivosos cães. Até amigas, amigos, são hoje um bando de delatores. 17 Trespassam as minhas mãos e posso contar todos os meus ossos, perante olhares de espanto de quem passa. 18 Nem as minhas roupas estão a salvo; despojam-me delas, com a fúria de quem quer apagar de vez a minha identidade. 19 E é, então, que, já sem olhos para ver, Te vejo sem Te ver, no mais fundo de mim, e transbordo daquela Paz desarmada e maiêutica que me vem de Ti, pura dádiva. 20 Podem fazer de mim, farrapo de limpar o chão; nem assim deixo de me fiar de Ti e de me deixar conduzir pela tua Ruah. 21 És Deus Abba-Mãe que nos fazes nascer para a liberdade e sermos dádiva viva com os demais e para os demais. 22 Anuncio o Teu nome, com este meu modo de ser-viver em liberdade/autonomia; e as pessoas vão cair na conta de que és Tu, a fonte que me gera e alimenta. 23 Todas, todos vós que prezais a liberdade, vinde à festa da Vida; deixai para os opressores e seus vassalos, as festas geradoras de alienação e de morte que eles promovem. 24 Nenhum oprimido, nenhum pobre, fique fora da festa que nos faz politicamente subversivos/maiêuticos com os demais. 25 De Ti, Deus Abba-Mãe, e da Tua Ruah maiêutica, vêm a força que ergue, desarmados, os povos contra a opressão, e dissolve a mentira dos faraós de todos os tempos. 26 A ordem económica e política mundial que os suporta, está a cair, cada dia; e, sem ela, tornamo-nos seres humanos. 27 Os faraós do terceiro milénio vão lembrar-se dos milhões de vítimas que estão a causar e, nelas, vêem, finalmente, o Teu rosto maternal e o Teu perdão incondicional. 28 Porque Tu és o amor maiêutico, a liberdade que tudo cria e liberta; autonomias/protagonismos políticos são a Tua festa. 29 Diante de Ti, ninguém tem que se inclinar, nem ajoelhar; o que Te alegra, é ver-nos assumir, com responsabilidade e em reciprocidade maiêutica, o mundo e a história. 30 Uma nova geração de mulheres, homens, livres, poetas e músicos, conta e canta às gerações vindouras estas Tuas práticas políticas e económicas sem igual. 31 E a humanidade, estabelecida, na realidade/verdade torna-se terra-consciência, na qual Tu, Deus Abba-Mãe, danças, em nós e connosco, toda a epopeia da criação.

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