O PODER DE FOGO DO BCE, por DOMENICO MARIO NUTI

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

Domenico Mario Nuti
Domenico Mario Nuti

 

O poder de fogo do BCE

Domenico Mario Nuti

A ideia de multiplicar o poder de fogo do FEEF/MEE pela utilização de títulos da dívida pública comprados e utilizados como colateral para poder levantar fundos emprestados junto do BCE, podendo assim, continuar a comprar mais títulos de dívida pública e assim por diante, foi rejeitada firmemente por Mario Draghi na Conferência de imprensa de 2 de Agosto, após a reunião do órgão directivo do BCE.

Draghi disse que estava “um pouco surpreendido com a muitíssima atenção que [tinha a possibilidade de uma autorização de operação bancária pelo MEE] recebeu na recente cobertura da imprensa e da opinião pública”… “Em suma, eu disse pelo menos duas vezes que o presente projecto do MEE não permite tal actuação. Não nos cabe emitir uma autorização bancária – Esta é uma questão para os governos. O que cabe a nós decidir é se o MEE mesmo com uma autorização bancária – pode actualmente ser uma adequada contraparte que seja elegível para o financiamento pelo banco central. E eu disse pelo menos duas vezes – numa conferência de imprensa e noutras ocasiões – que a actual estrutura do MEE não permite que este seja reconhecido como uma contraparte adequada” (sublinhado nosso).

Além disso, Draghi refere “um parecer jurídico do BCE sobre este assunto, que foi emitido bem antes, [em 17] de Março de 2011”. O texto da conferência de imprensa realmente trazia o link para aquele parecer jurídico.

Especificamente, o parecer jurídico do BCE argumenta que o “artigo 123 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia não permite que o MEE se torne uma contraparte do Euro-sistema no âmbito do artigo 18.º dos estatutos do SEBC [Sistema Europeu de bancos centrais]. Este último elemento, o BCE lembra que a proibição de financiamento monetário no artigo 123.º do TFUE… é um dos pilares básicos da arquitectura jurídica da UEM quer por razões de disciplina orçamental dos Estados-Membros quer ainda para preservar a integridade da política monetária única, bem como a independência do BCE e do Euro-sistema”.

Artigo 123.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia de 2009 (ex-artigo 101.º da versão consolidada do início de 2006) estabelece que:

“1. É proibida a concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer outra forma pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais dos Estados-Membros, adiante designados por «bancos centrais nacionais», em benefício de instituições, órgãos ou organismos da União, governos centrais, autoridades regionais, locais, ou outras autoridades públicas, outros organismos do sector público ou empresas públicas dos Estados-Membros, bem como a compra directa de títulos de dívida a essas entidades, pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais.”

Embora: “2. As disposições do n.º 1 não se aplicam às instituições de crédito de capitais públicos às quais, no contexto da oferta de reservas pelos bancos centrais, será dado, pelos bancos centrais nacionais e pelo Banco Central Europeu, o mesmo tratamento que às instituições de crédito privadas.”

O mérito jurídico do parecer assenta exclusivamente na interpretação do BCE das suas próprias regras, não de um tribunal superior ou de uma interpretação “autêntica”. No entanto, claramente não o devemos tomar como uma resposta: independentemente da situação jurídica, não há nenhuma vontade ao nível da direcção do BCE para transformar o MEE num braço do BCE como refinanciador em última instância (para os governos). A rejeição desta arma por Draghi é agravada por declarações semelhantes feitas por Merkel, Schäuble, pelos políticos da CDU, holandeses e finlandeses.

O que dizer do BCE a actuar como um agente do FEEF/MEE, dentro de um orçamento residual do FEEF relativamente pequeno (cerca de 150 mil milhões de euros) e/ou – ainda a estar sujeito à aprovação do Tribunal Constitucional alemão que é esperada em 12 Setembro – o limitado mas mais substancial MEE (€ 500 mil milhões), com a ideia de reduzir o spread sobre os títulos dos governos “virtuosos”?

Aqui existem mais desenvolvimentos encorajadores:

1) Em 20 de Agosto o relatório mensal do Bundesbank confirmou o ponto de vista do seu presidente para quem ” as compras de títulos são problemáticas e podem levar a riscos para a estabilidade”. Ao mesmo tempo Jorg Asmussen, o outro representante alemão no órgão do BCE, de forma activa e de maneira bem evidente defende “a compra pelo BCE em termos ilimitados [de títulos das dívida pública]”, para que o BCE venha a tirar todas e quaisquer dúvidas entre os participantes do mercado quanto ao futuro do euro (Eurointelligence.com, 21 de agosto);

2) Os detalhes sobre a utilização do FEEF/MEE como um escudo anti-spread estão ainda em discussão, mas a proposta já foi aprovada por Angela Merkel repetidamente durante o mês passado, enquanto a má ideia de que limitar o spread a dados níveis seria accionar automaticamente a compra de títulos foi já negada pelo BCE;

3) A credibilidade da posição de Jens Weidman foi preventivamente minada pela revelação que, em 1975, o Bundesbank havia realmente violado os seus próprios princípios em termos de política de aquisição de títulos da dívida pública e, possivelmente, em termos dos seus próprios estatutos através da compra de títulos do governo alemão no equivalente a 1% do seu PIB na época. (consulte-se FT, 7 de Agosto e a excelente peça por Evelyn Harriman do BNP Paribas.

Na verdade, o Banco Central alemão a comprar títulos de dívida pública alemã não é a mesma coisa que o BCE a comprar dívida pública italiana e espanhola, mas se o BCE comprou títulos de dívida pública de todos os países membros da UEM, nas mesmas proporções em que tomam posição no BCE, a redistribuição não deve ser um problema. Como eu escrevi no meu post anterior em resposta a um comentário de um leitor:

“Suponha que o BCE comprou um pacote equilibrado de 100 mil milhões de títulos de dívida pública dos governos da UEM e nas mesmas proporções que os membros da UEM detêm acções no BCE.”

“Cerca de 30% das acções do BCE são detidas por 10 membros da UE que não são membros da UEM (com o Reino Unido a ter 14,5%), e o restante é dividido entre os membros da UEM: Alemanha com 18,9%, a França com 14,2%, a Itália com 12,5%,…, a Espanha com 8,3%, a Grécia com 2%, Portugal com 1,75%, a Irlanda com 1,11%,… e Malta com 0,06%. Portanto, o pacote de títulos comprado pelo BCE conteria 100/70 ou aproximadamente 1,43 vezes partes do que cada membro da EMU participa no capital do BCE, por exemplo, a Espanha com 11.869 mil milhões de euros.”

“Suponha que subsequentemente a Espanha entra em incumprimento e os seus títulos perdem 50% do seu valor. A Alemanha [como accionista do BCE] perde 0,189 * 0,5 * 11.869 mil milhões de euros, ou seja, 1,121,6205 milhões de milhões de euros. Uma quantidade correspondente de €18 mil milhões da dívida alemã comprada pelo BCE poderia ser cancelada, e assim por diante para todas as perdas correspondentes de outros membros da UEM.”

“Os accionistas não membros da UEM teriam que ser compensados pelo BCE pela perda de 30% da perda de valor dos títulos da dívida de Espanha, ou seja, teriam que ser pagos dividendos de 0,30 * 11.869 mil milhões de euros; todos os gastos do BCE vindos dos lucros do BCE [incluindo a receita da emissão de moeda (seigniorage) se assim for preciso, caso em que os não membros da EMU não podem ter direito a compensação…].”

“Em conclusão, os países que não são membros da UEM seriam compensados pela sua participação nos custos do incumprimento de Espanha com os dividendos enquanto os membros da UEM seriam compensados pela retirada do valor correspondente dos seus títulos (sem prejuízo pelo direito presente dos membros não pertencentes à UEM beneficiarem ou não dos direitos de seigniorage“.

Assim, não há nenhuma razão para que os países periféricos membros da zona euro (ou seja, de elevados spreads) entrem em pânico – POR AGORA. Havendo vontade, há solução. E os mercados financeiros acreditam no esforço de Draghi para congregar forças.

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