Sobre o texto de Ricardo a Marx, de Marx a Ricardo, sobre o livro de Piketty, sobre a dinâmica das desigualdades: algumas reflexões
21 de Maio de 2014
Parte VI
(CONTINUAÇÃO)
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Todos estes resultados que acabámos de discutir mostram-nos que para um dado ponto de intersecção das curvas w(r) temos uma ordenação das intensidades capitalistas e que para o outro temos uma outra ordenação e isto para os mesmos dois sistemas. E note-se que nada disto pode ser imputado ao sistema de preços pois na vizinha dos pontos considerados o sistema de preços é, por definição, exactamente o mesmo. Tudo tem a ver com o fenómeno da heterogeneidade de bens de capital, de haver diferentes bens físicos como bens de capital, o que leva à necessidade de se ter um sistema de preços para determinar exactamente o valor do capital, mas o sistema de preços depende ele próprio da repartição de rendimento, com o qual se quer medir esta mesma repartição!
Como assinala Pasinetti sobre os sistemas de retorno das técnicas, dito também de fenómeno de reswitching:
Situados em r1, um aumento da taxa de lucro significa a passagem para um sistema com um valor de capital por trabalhador mais baixo [não imputável aos preços como se acabou de referir] com um rendimento por trabalhador menor também. No ponto r2, um aumento da taxa de lucro significa a passagem de um sistema com menos capital por trabalhador para um sistema com mais capital por trabalhador e com maior rendimento por trabalhador. [Como se vê, um aumento de taxa de lucro num caso significa uma coisa, num outro caso significa outra exactamente oposta!]
Estes resultados da teoria neoclássica e as suas relações de monotonia podem ser expressos por um gráfico obtido através de uma ferramenta fundamental no ensino da teoria neoclássica de que já falámos, a função de produção Cobb-Douglas. Com efeito desta função, homogénea de grau um, retira-se que:
Neste gráfico, temos em ordenadas o valor do produto por trabalhador e em abcissas o capital por trabalhador.
A função de produção assume a seguinte formulação Y = A ou ainda Y = F(K, L) ou ainda y = f(K/L) = f(k). Dado o facto de ser uma função homogénea de grau 1, pode ser escrita como Y = L+K. Nesta soma, a primeira parcela representa a “contribuição” do trabalho na formação do rendimento criado no país enquanto a segunda representa a “contribuição” do capital na formação do mesmo rendimento. Sendo os factores remunerados segundo a sua produtividade marginal, então a primeira parcela representa a massa salarial, a segunda a massa dos lucros, γ representa o peso dos lucros no rendimento e (1 – γ) o peso dos salários no rendimento. Daqui uma conclusão espantosa: deixando o mercado completamente livre, assegurando-se a concorrência perfeita, cada “factor” ganha segundo o que contribui para a produção e não há portanto nem exploradores, nem explorados. Sendo assim e de acordo com o modelo, tem então razão Rick Santorum, até há muito pouco tempo senador, que denunciou o termo “classe média” como sendo “um termo do marxismo”, porque, veja-se, nós não temos classes sociais na América. E ao aceitar-se a função Cobb-Douglas, ao aceitar-se a teoria neoclássica, estaríamos assim a aceitar o discurso da extrema-direita americana.
Na última expressão, dividindo tudo por L obtemos y = +k e sabendo que os factores são remunerados segundo a sua produtividade marginal y = w+rk, expressão esta que já conhecemos quando deduzimos o significado da curva w(r).
No gráfico acima, repare-se no ponto A. Neste ponto temos em ordenada o produto líquido por trabalhador, a que corresponde nas w(r) o valor w(0), enquanto em abcissa temos o capital por trabalhador que lhe está associado. A tangente no ponto A dá-nos a remuneração por unidade de capital, ou seja, o nosso r, expresso por dy/dk, tal como foi anteriormente utilizado quando mostrámos que k = k (w/r)+. Quando o capital por trabalhador é , o rendimento por trabalhador é . A tangente neste ponto A representa, já o sabemos, os lucros por unidade de capital, r, o que multiplicado pelo capital por trabalhador, expressa o “direito” do capital à repartição do produto criado, r, e que aqui assume o valor do segmento BA ou, no eixo das ordenadas, assinalado pelo segmento w. Dado o valor , dado o montante dos lucros, o resto é imediato: OW representa o salário por trabalhador w, representa o seu “direito” ao produto de acordo com o que exactamente contribuiu para a obtenção do produto final. O segmento O é pois representado por w+rk, ou seja, por Ow+w, expressão que temos vindo sucessivamente a utilizar, sabendo-se agora a carga ideológica que pode representar.
Evoluindo ao longo da curva para um ponto à direita de A temos o produto por trabalhador mais elevado que no caso anterior, temos um capital por trabalhador também mais elevado que no caso anterior, enquanto a tangente no segundo ponto assinalado tem menor inclinação que a do anterior, a representar uma taxa de lucro mais baixa. A monotonia é aqui evidente. Ao longo da curva e à medida que nos afastamos da origem do sistema de eixos, podemos afirmar que a pontos de tangência mais afastados da origem correspondem valores de r mais baixos e a valores de r a baixar correspondem valores do produto por trabalhador e capital por trabalhador a subirem. Num simples gráfico, os três grandes resultados da teoria neoclássica, os três grandes resultados que com o auxílio da teoria neo-ricardiana também mostrámos já a sua incoerência no mundo capitalista onde a heterogeneidade de bens de capital é a norma.
Os três resultados fundamentais da teoria neoclássica podem ser bem evidenciados também através da função de produção à Samuelson ou como ele próprio lhe chamou “a função sucedânea de produção” ou fronteira do preço dos “factores”, explicitando-se aqui o que no gráfico acima estava apenas relativamente implícito. Com esta fronteira, Samuelson aparentemente responde aos neo-ricardianos, criando uma réplica da função Cobb Douglas no espaço (r, w), onde se pressupõe infinitos sistemas de produção com heterogeneidade dos bens de capital. Mas responde só na aparência, como veremos.
No espaço (r, w) temos múltiplas linhas/relações w(r) em que cada uma representa um sistema de produção definido por um par de técnicas para produzir os dois bens. As relações, todas elas, são lineares a garantir que o capital por trabalhador é constante em cada sistema qualquer que seja a sua repartição entre r e w. A função convexa relativamente aos eixos, a cheio, dá-nos em cada ponto de tangência, a rácio capital/trabalho definida pelo sistema de produção (linear) tangente à função no ponto considerado. À medida que nos deslocamos da direita para a esquerda, à medida que vamos diminuindo r, vamos apanhar uma outra linha de maior inclinação, vamos passando de um ponto a outro na linha a cheio. À medida que nos deslocamos neste sentido, temos a taxa de lucro a descer, temos a rácio capital/trabalho a subir. Mas, repare-se, à medida que vamos aumentando a intensidade de capital por trabalhador, a intersecção da linha com o eixo do w fica cada vez mais distante da origem. Ora, a intersecção de uma linha a representar um qualquer sistema w(r) com o eixo dos w representa o ponto em que r é igual a zero e em que w é então igual ao produto líquido por trabalhador. Logicamente assim, pois no caso de duas classes na luta pela repartição de rendimento, se uma, os capitalistas, não ganham nada, então os trabalhadores ganham eles um salário igual ao produto líquido que produzem. Ou seja, à medida que r baixa, o capital por trabalhador sobe e o produto líquido por trabalhador sobe igualmente. Enfim, esta função de produção é produto da genialidade de Samuelson, mas isto não chega. Este passo de magia é conseguido à custa de uma hipótese que não tem nada de mágico e que torna esta construção elegante mas completamente inútil. Com efeito, as relações w(r) lineares significam que os dois bens têm a mesma intensidade capitalística. Ora, se os dois bens têm a mesma intensidade capitalística são, do ponto de vista de produção, bens idênticos, como sublinhou Garegnani nos anos de 1970, ou seja, os resultados da teoria neoclássica assumem-se como conceptualmente válidos num mundo de infinitas técnicas mas a um só bem, isto é, num mundo que não existe. Mais ainda, quando os bens são idênticos do ponto de vista de produção, as relações de troca de equilíbrio são determinadas pelas quantidades de trabalho directa e indirectamente necessárias à sua produção, isto é, são as que correspondem a um estádio rude e primitivo da sociedade. E é esse o modelo que Piketty vem agora recuperar. Com que amarga ironia pudemos ler no seu livro: “A hipótese Cobb-Douglas [a função de produção neoclássica que salvaguarda os postulados acima, como vimos] é, por vezes, uma boa hipótese para analisar subperíodos e constitui um bom ponto de partida útil para a reflexão”.
Em síntese, diremos nós, os três resultados da teoria neoclássica acima referidos caem por terra, os três resultados igualmente sintetizados na função de produção à Samuelson. Assim, por exemplo, não se deve ensinar aos estudantes que cada “factor” é remunerado segundo a sua produtividade marginal em valor quando tudo permanece constante, senão de um modo fortemente crítico e explicitando-lhes económica e ideologicamente o que vale toda esta construção. Estes três resultados da teoria neoclássica, adicionados ao facto de considerarem que a determinação dos preços depende da oferta e procura, e não do custos dos factores, representam o quadro ideológico da economia dominante e são o suporte teórico para a desregulação dos mercados e a partir do qual se justificam todas as políticas neoliberais, entre as quais a desregulação à escala internacional. Todos os seus resultados, todos os seus fundamentos ideológicos, caem pois por terra e são estes que directa ou indirectamente Piketty vem agora querer recuperar. Curiosamente, Piketty não se distancia em nada da visão neoclássica da repartição quando aceita o conceito de produtividade marginal que, segundo ele, é “definida independentemente das instituições e das regras — ou da ausência delas — que caracterizam a partição capital-trabalho numa sociedade dada”. É curioso, dada a ambição do título do livro, verificar que a sua explicação sobre a produtividade marginal acaba por aceitar o conceito criado pelos neoclássicos e assim não ganha nenhuma distância face à visão apologética que nos é transmitida pela função Cobb-Douglas, distinguindo-se em detalhes apenas. Veja-se o capítulo 6 da sua obra citada, a que deu o título de A partição entre capital e travail no século XXI. Citemos aqui apenas uma passagem do livro de Piketty sobre o assunto: “a hipótese Cobb-Douglas duma completa estabilidade de partição entre capital e trabalho não permite ter em conta de forma totalmente satisfatória as evoluções a longo prazo”. O sublinhado é nosso.
(continua)
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