CRÓNICA DE DOMINGO – “Os «ranhosos» e os «nudistas»” – por Joaquim Palminha Silva

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Há passagens da memória (insisto muito nisto) que podem esclarecer a vida de adulto e outras passagens que, como garrafas de cerveja partidas, estilhaçam a memória e os nervos ao mais calmo…

            O que poderá levar um homem a detestar o nudismo? Os sonhos de liberdade espremidos até ao osso? A algazarra das repressões que caem sobre nós na infância? A monotonia das carências a pedir música de fundo?

            Cumprimentando quem passa pela memória com um aceno de cabeça, amigos de infância, é claro, os mortos e os que restam vivos fazem-me pedidos: – «Ó pá, fala daquela história que deu o nome à malta…».

            Há momentos na vida em que uma pessoa não pode perder a partida, a luta, o emprego, a namorada, a mulher, a casa, a aposentação, a excursão à festa do Senhor dos Aflitos, minha particular devoção… Há pedaços de tempo, recortados da existência de uma pessoa, como um cromo da antiga colecção das “raças humanas”, em que a alma dentro de nós é tanta e tamanha que não se pode perder nada. Eis, pois, a história do que não se perdeu… – As saudades dos garotos da rua, quando a luta de classes andava de calções e havia outra maneira de descobrir os mistérios da vida, às vezes, à fisgada!

            No fim daquela rua de Almada, no cotovelo que escondia ignotos mundos, depois de passar os quintais, havia um muro hostil, grosso e alto, com o rebordo crivado de cacos de copos e garrafas, vidros agudos e cortantes como navalha. Esse muro estava afastado do último candeeiro público da rua… Para lá desse muro ficava um terreno em declive até quase à borda do Tejo, outrora zona despida de ocupação humana, mas na altura já incorporada negativamente na vida social da Almada nova que ia nascendo. Nesse terreno, repleto de tristes barracas (tábuas de caixotes, chapas de alumínio, pedaços de carroçarias de automóveis, etc.), moravam famílias de má reputação, tumultuosas, que deitavam ao mundo miúdos demasiado feios, sujos e maus para o gosto da pobre “aristocracia” da rua. Esse terreno onde houvera uma grande horta murada, com sua nobre casa de habitação, acabou por dar nome paradoxal ao “bairro da lata”: – Quinta da Alegria! Era aí, no seio irrequieto do pobre bairro, que tinha sua sede um bando organizado de miúdos agressivos, embriagados de liberdade e fome, que os da minha rua intitulavam de «ranhosos».

            «- Queres reinar?», de pião e corda nas mãos, um sorriso de aliciamento nos lábios, assim podia começar um projecto de sociabilidade entre os miúdos… Mas esta sociabilidade não passava o horizonte do fim da rua, não se estendia para lá do cotovelo e do alto muro após os quintais… Os miúdos da rua, mais lavados e arranjados, a camisa no seu lugar, os cabelos penteados pelas mães e o estômago acalmado a tempo e horas com sopas suculentas e outros mimos culinários, hostilizavam naturalmente o bando dos «ranhosos» da «Quinta das Alegria». Explicava esta atitude um vago conceito de equilíbrio social e naturalidade nas maneiras, assim como no vestir estava implícito o quadro da sua remediada pobreza, lavada e resignada.

            Os dias negros, os dias terríveis para os miúdos da rua eram os do aparecimento do bando dos «ranhosos», em expectativa ameaçadora, vanguardaImagem1 infantil da «Quinta da Alegria», bando organizado de vagabundos, armados de paus e fisgas, que vinha do seu bairro de lata para desafiar o bando da rua, contrariar a diferença dos destinos. Os miúdos da «Quinta da Alegria» tinham instrução bélica, feita sabe-se lá onde. Chegavam a manejar os paus como os esgrimistas o florete, a sua artilharia protectora era produzida pela rude pedrada manual, fortificada na retirada estratégica pelas fisgadas certeiras, quase mortais, tal tiros de carabina! Atacavam rápido e retiravam quase logo, levando o saque de ocasião, sem deixarem espaço para qualquer manobra defensiva. Ofendiam-se com o título de «ranhosos» que o bando da rua lhes atirava à cara e, com destra prontidão, davam sovas monumentais aos outros miúdos sempre que os apanhavam isolados, sem defesas de grupo. Guerrilheiros capazes de um sarilho estonteador de cacetadas e pedradas, fugiam logo que se falava em chamar a Polícia, pois sabiam que na «Quinta da Alegria» a presença da autoridade era quase sempre mal vista pelos seus progenitores… Quando os «ranhosos» vinham à rua decididos ao combate, choviam as pedras, quebravam-se os vidros das janelas com tilintada assustadora, havia choros e esconjuros, portas a bater, mães a gritar… Ao cabo e ao fim, os «ranhosos» nunca ganhavam nem conquistavam espaço, mas retiravam-se assobiando, satisfeitos com o rude saque… A Polícia, chamada à última hora, não impedia nada, não prendia ninguém…

            Mais ou menos na altura da Volta a Portugal em Bicicleta, quando o Alves Barbosa vestia a «camisola amarela», o bando dos «ranhosos» fez sentir a sua ausência na rua e no terreno dos conflitos bélicos… Houve uma pausa tal que até os adultos da rua, naquele Verão tropical de alvoroços desportivos, comentavam a ausência dos «ranhosos», considerados já como fauna obrigatória da vizinhança, como fruta da época… Que estariam a magicar, mordendo a beata nos lábios infantis, as caras sujas dos «ranhosos»?

            Naquele tempo, os miúdos da rua atirados para as “férias grandes” costumavam ir buscar inspiração aos filmes de piratas com o Errol Flynn (sucesso de bilheteira!) a fazer de capitão Kidd e sua bandeira negra (caveira e tíbias cruzadas), que praticavam num terreno à beira- rio que ficava para lá da «Quinta da Alegria» (onde depois instalaram os estaleiros da extinta Lisnave)…

            Os miúdos da rua foram uma manhã até à beira-rio: – Para apanhar caranguejo com cabeças de peixe-espada enfiadas num gancho de arame, algum mexilhão agarrado às pedras e, a fechar a manhã, todos nus a tomar banho, quando já próximo do meio-dia o Sol convidava aos mergulhos. Deixaram então a roupa resguardada com uma pedra em cima, bem longe da água, por via das marés…

            Matreiros, esguios, como matilha de cães vadios, os «ranhosos» seguiram em silêncio e à distância os miúdos da rua. Campanha militar clássica ou guerra de guerrilhas, logo que os «ranhosos» viram os outros distantes da avenida marginal, olhando a pescaria e brincando na água, nas calmas, recolheram-lhes a roupa, sapatos e tudo, deixando-os completamente nus!

            Os «ranhosos» atestaram desta forma a sua cólera plebeia para com os miúdos da rua, possuída do anarquismo básico de gerações de párias, acrescentando-lhe às mãos cheias chapadas de areia molhada e, rebuscando na sua memória as mais evidentes e sonoras palavras, gritando como ofensa sinistra dinamitada na direcção dos miúdos da rua, de forma que se ouvia «lá em casa do caneco»: – «Olha os nudistas! Olha os nudistas! Olha os nudistas!».

            Aquela gritaria era para ser ofensiva, do género “ó vai ou racha”! E resultou como instrumento de pressão directa, como registo de escarrador: – O bando dos «nudistas» passou a levar «porrada» do bando dos «ranhosos»!

            Os candeeiros públicos esconderam então a nudez, e as “partes vergonhosas”, do bando dos «nudistas» que, abraçados a eles, faziam assim, por etapas escalonadas, o caminho de casa… À medida que cada um entrava no “lar”, o alvoroço tomava conta da rua, com os chefes de família a sorrirem e a despacharem bofetões e as mulheres, com as mãos ensaboadas da água dos alguidares onde estavam a lavar, aos berros de «Desavergonhado!», «Malvado!», «Desgraçado!», «Alma do Diabo!»…

            Nesse dia, os «ranhosos» venceram definitivamente o combate! Os miúdos da rua ficaram com o nome supostamente enxovalhado de «nudistas», que os garotos dos casebres escreveram nas paredes escalavradas e eu, muitos anos depois, já céptico dos alvoroços do mundo, acabei por entender a razão por que nenhum dos exnudistas, dos que ainda se conservam vivos, gosta realmente de “ir a banhos”, de frequentar a praia e andar quase nu, de calções e toalha, a enterrar os pés na areia… Só agora, na posse desta memória e sem soporíferos, eu percebo por que razão não aturo a praia… Como diz o Leocádio, com a concordância dos demais: «Não pode haver nada mais estúpido.».

 

 

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