Foi no XI Jornada do Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins, em Junho de 2014, que esta comunicação foi apresentada, da qual retiramos a maior parte do seu conteúdos.
A LEITURA ENTRE O ÓBVIO E O EXTRAORDINÁRIO
A observação de procedimentos ao ler, realizados por leitores iletrados ou analfabetos – desde crianças a adultos em situações diversas – , propicia verdadeiros achados de natureza empírica a respeito do que é a leitura.
Evidencia-se a leitura como:
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acontecendo na interação dos sentidos, das emoções e da razão *
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incentivadora da sensibilidade, da imaginação e do intelecto
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provocadora de novas leituras em diferentes linguagens, permitindo sua “iluminação mútua”
* Esses três níveis de leitura são detalhados em O que é Leitura. Maria Helena Martins. Brasiliense, 1982(1ª. Ed.).
[…]é possível entender que a leitura se constitui como um processo de atribuição de significados a linguagens verbais e não-verbais ou a quaisquer formas de expressão. Tal processo é circunstanciado no tempo e no espaço do leitor, que é mobilizado por seus sentidos, suas emoções e sua razão, simultaneamente, embora um ou outro desses componentes prevaleça.
INTERAÇÃO esquemática DOS COMPONENTES DO PROCESSO DE LEITURA
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Sentidos > Sensações
Os sentidos (visão, audição, olfato, paladar, tato) expandem-se em sensações (manifestações de natureza mais superficial). Ambos tendem a ser vivências simples e passageiras, imediatas.
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Emoções > Sentimentos
As emoções envolvem nossa psique, nossa imaginação e nossa sensibilidade, sendo mais impulsivas, tendem a se desdobrar em sentimentos, vivências mais complexas e duradouras .
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Razão > Intelecto
A razão envolve nossa capacidade pensante e memória, mesclando sentidos, emoções , permite estabelecer relações significativas entre o que se lê e nosso intelecto ( inteligência), também evoluem, relacionando a leitura do momento com outras leituras já realizadas.
ANTÍDOTOS CONTRA A NÃO-LEITURA
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A leitura começa antes e vai além do conhecimento da escrita
A criança, antes do que usualmente se supõe, já é leitora ávida do mundo que a cerca: a leitura é propulsora decisiva de seu desenvolvimento.
Quando lemos – sendo alfabetizados, analfabetos ou iletrados – levamos para essa leitura nossa bagagem cultural e vivências anteriores que farão parte desse processo. Possivelmente, continuaremos lendo, após o contato com esse novo objeto de leitura, via memória, imaginação, reflexão a seu respeito, assim como partilhando a experiência com outros leitores.
A LEITURA AO JEITO DE CADA LEITOR e a INTEGRIDADE DO QUE É LIDO
Cada leitor realiza uma leitura pessoal – a sua leitura –, a qual pode se modificar conforme seja repetida ou partilhada com outro leitor, apesar daquilo que é lido não se alterar. Aliás, embora se possa realizar várias e diferentes leituras de um mesmo objeto, fenômeno, ato, livro, situação , é fundamental respeitar o que se está lendo, sem distorcer sua integridade formal e seu conteúdo. Esse é um dos requisitos mais exigentes para uma leitura efetiva.
Um artista plástico, um professor de literatura, um músico, um crítico de artes, um letrado ou iletrado, um leitor comum ou um analfabeto– cada um deles lerá conforme sua experiência de vida e suas expectativas. E essa leitura será aceitável desde que seja coerente com a obra: não seremos fiéis ao objeto lido se lermos, p.ex, uma paisagem rural como se fosse uma vista urbana. Tal leitura reveleria limitações do leitor.
SENTIDOS, EMOÇÕES E RAZÃO interagindo fundamentam o PROCESSO DE LEITURA
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Para qualquer leitor, analfabeto ou alfabetizado, a interação de sentidos, emoções e razão fundamenta o processo de leitura, ainda que um ou outro prevaleça ou mesmo seja pouco perceptível.
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Cada um desses componentes também tende a se desenvolver nessa ordem, tendo maior ou menor presença no processo. A experiência de vida que possua o leitor e sua disponibilidade são fundamentais para ele perceber uma significação no que se apresenta para ler.
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Mais: para estar predisposto a descobertas, não importa que linguagem ou assunto se apresente para ler. Da mesma forma, sempre haverá tantas leituras quantos forem os leitores e as vezes que leia.
“ O mais difícil, mesmo, é a arte de desler” – Mario Quintana
* Dra em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP); pesquisadora sobre leitor e leitura.(mhmartins@celpcyro.org.br)