A FRONTEIRA ONDE BORGES ENCONTRA O BRASIL – 8 – por Carmen Maria Serralta

(continuação)

5 – Visita dos dois Borges

Desejo ainda, para fechar esta parte da nossa conversa, voltar aos dois Borges a que fiz menção: o da persona poética e, o outro, o da pessoa do cotidiano. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o homem Borges viveu na confluência de dois mundos: o da leitura e da imaginação criativa por um lado, e o do mundo real e do homem comum, por outro. Ou para dizer como ele mesmo declara, existe um Borges pessoal, íntimo, que não mudou desde criança, exceto que em criança não sabia se expressar, e um outro, personagem que muito lhe desagrada e é o mesmo, só que com gostos e desgostos exagerados.[1] Ao levar em conta que foram os dois que nos visitaram, já que ambos em vida são inseparáveis, fico tentada a ler “Borges e Eu” na íntegra, pela sedução e prazer encontrados nesse texto de múltiplas leituras, aliás, como todo Borges; também por ser revelador do seu eu biográfico e íntimo no cruzamento com sua persona poética.

 

Borges e Eu

Ao outro, a Borges, é a quem acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me detenho, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e a porta envidraçada; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome numa lista de professores ou num dicionário biográfico. Eu gosto dos relógios de areia, dos mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura e essa literatura me justifica. Nada me custa confessar que ele tem conseguido criar certas páginas válidas, mas essas páginas não podem me salvar, talvez porque o bom já não pertence a ninguém, nem sequer ao outro, mas sim à linguagem ou à tradição. De resto, estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou lhe cedendo tudo, ainda que me conste seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre.  Hei de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros que em muitos outros ou no laborioso rasgado de uma guitarra.  Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias de arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são de Borges agora e terei de idear outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo perco e tudo é do esquecimento, ou do outro.

Não sei qual dos dois escreve esta página. (El Hacedor, 1967, p 71).

 

PARTE II

 

6 – A fronteira como revelação

            Quando Jacques Leenhardt [2] reflete sobre o conceito de fronteira, ele lembra a definição da palavra latina limes – daí limite – e explica que ela é menos uma linha do que um espaço. A limes (o limite) designa um intervalo, uma borda, uma margem sem apropriação, embora possuindo todos os valores políticos, simbólicos e religiosos que, segundo ele, a figura de Hermes da mitologia grega resume. Hermes é o deus protetor das fronteiras, da passagem, da mobilidade, dos acordos, também ladrão de rebanhos e o que está ao lado dos heróis. É ainda, entre outros, um embrulhador de pistas e guia dos viajantes. No mesmo ensaio Leenhardt assinala a sutileza de Borges ao se referir à fronteira: “Quando Jorge Luis Borges tenta figurar a subversão de todos os lugares e de todas as linguagens inventando um universo desconhecido, Tlön, quando ele descreve esse universo paradoxal por meio de suas paisagens e de sua metafísica, ele diz do mensageiro pelo qual a cultura de Tlön foi conhecida uma só coisa: ‘ninguém sabia nada do mensageiro morto senão que vinha da fronteira. ’” Acrescenta – o pensador francês – que a língua desse planeta não pensa o mundo através de substantivos (essências), mas por meio de verbos. Assim é a estrutura do universo de Tlön: ações sem suporte essencial. E Leenhardt volta ao seu conceito de fronteira, às bordas, às franjas sem apropriação, para retomar a definição de limes como caminho entre dois territórios não pertencendo nem a um nem a outro e sim aos dois. É esse o espaço da fronteira – espaços sem substância que dependem (para existir) de um fazer ancorado em uma cultura: pastagens de animais (ovelhas ou vacas) nos campos limítrofes. E conclui: “O limes é esse espaço utópico inteiramente definido por uma prática e não por uma lei”.

            Não é difícil imaginar o Borges – enquanto percorria aqueles vastos campos de Tacuarembó – ir sentindo a presença física da fronteira próxima e, ao mesmo tempo, ir enriquecendo-a de mil e uma conotações que poderiam ser simbolizadas na evocação do multifacetado deus grego. Este jovem deus, mensageiro de Zeus (o soberano dos deuses) é ainda apresentado como mestre das entradas e das técnicas de conjunção e de articulação, unindo a terra e o céu, os vivos e os mortos.   Quando o nosso ficcionista-viajante lá divisou uma vida campeira diferente – estranha e selvagem – deixou-se seduzir pelo lugar. Vejamos o que Vázquez nos relata do que ele lhe contou:

            Seduziram-no o lugar; a fronteira, local de passagem para quem trafica ou foge; a vida que levavam os gaúchos (pronunciando a palavra à antiga maneira oriental[3] quer dizer, à portuguesa) e as enchentes do rio Tacuarembó, que obrigava os passantes a aceitar a hospitalidade dos negociantes e dos donos de boliches (Vázquez, 1996, p.133).

            Borges biográfico experimentou a vivência da fronteira não só na extensão da planície – horizontalmente vertiginosacomo nas coxilhas e também na cidade. E a partir dessa experiência vívida e vivida, transfigurou-a graças ao seu processo criativo em alguns contos magistrais. Neles, a realidade de fronteira, a nossa, há de persistir aludida e refletida para sempre – ao menos enquanto existirem leitores de Borges – em criações que levam a marca do gênio.

            Desde aquele distante verão de 1934, a cidade de Rivera, como bem assinalou o escritor, segue se confundindo com a brasileira Santana do Livramento. A chamada linha divisória entre os dois países ainda continua sendo, no sentir dos habitantes fronteiriços, mais um espaço aberto do que uma linha de demarcação geopolítica de limites. Quanto aos costumes e usos do homem da nossa região, entrevistos pelo poeta cego, tanto no campo (nos “gaúchos barbudos e nas barbas descuidadas”) como na cidade (na morte violenta, despótica, impune do infeliz bêbado)muita coisa mudou de lá para cá. O mundo globalizado do século XXI é definitivamente outro. Nós, definitivamente, outros. Mas a ideia de fronteira como “potencializadora de significados” permanece, assim ainda a vejo, tão inesgotável quanto no passado. Acho lícito pensar a fronteira como uma entidade mítica (essa, presumo, ser também a de Borges), tal qual a caatinga de Graciliano Ramos, o sertão de Guimarães Rosa e o pampa de Simões Lopes Neto.

(continua)

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[1] Vázquez, 1984, p. 242 e Vázquez, 1996, p. 324.

[2] Teórico e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais/EHESS e do CNRS, em Paris. Martins, 2002, p. 29-30.

[3] Oriental, sinônimo de uruguaio, que pertence à República Oriental do Uruguai.

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