CONTOS & CRÓNICAS – FASCÍNIO INDISCRETO DO EFÉMERO – por Manuel Simões

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Não se pode dizer que aos portugueses falte imaginação, e a vários níveis. Há os que têm de recorrer forçosamente a ela, abrindo aqui, tapando acolá, para equilibrar a vida, que muitas vezes não chega a ser sequer vida; e, em sentido contrário, há os que vivem de economias paralelas, melhor dizendo, submersas, enriquecendo à custa dos primeiros, lembrados com umas migalhas quando servem os votos. E como a sociedade  de hoje está virada para o entretenimento – tudo serve como espectáculo! -,  a classe genericamente dita média sente uma atracção irresistível para acorrer, às vezes quase histericamente, a eventos exaltadores do efémero, do supérfluo e até do anedótico, concorrendo para uma caricatura das qualidades nacionais por força de modas impostas por circuitos internacionais que só abastardam as tentativas de evolução do gosto.

E aí temos a tendência para o abismo, esta mania dos recordes mais possidónios que nos levarão a entrar no Guinness, ainda que seja à custa de manifestações “que já nem inglês vê” e só denotam um provincianismo de algum modo cultivado e fomentado pelo populismo mais abjecto de programas televisivos de maior audiência, aspecto que anos a fio de telenovelas estereotipadas e sem qualquer ligação com a “normalidade” social ajudou a consolidar.

São conhecidos muitos exemplos desta “guinnessomania” que, de vez em quando, sobretudo em épocas festivas, atravessa o país de Norte a Sul como uma epidemia cujo vírus provoca desvarios piores do que a conhecida “tarantella”: houve a tentativa de reunir a maior quantidade de palhaços, coisa que não me parece difícil e ao alcance de qualquer “maduro” que se proponha fazer a contagem, tantos são os que proliferam por aí com as lantejoulas camufladas; também já se efectuaram concentrações de Pais-Natal com o mesmo objectivo, experiência que se vem repetindo de ano para ano: haverá sempre mais um a somar aos do ano transacto.

Ligados à gastronomia há muitos exemplos, talvez mais generosos mas animados pelo mesmo espírito consumista, desde o maior pão algures na Beira, ou ao maior bolo-rei no Algarve, até ao mega-cozido à portuguesa, que uma freguesia do concelho de Caminha teima em inscrever no Livro. Não é difícil antever, no futuro, concentrações numerosas à volta de mastodônticas “sopas-de-pedra”, “feijoadas à transmontana” ou “sopas de sarrabulho”, tudo em nome da glória efémera da inscrição no Guinness, talvez como forma de compensação para as coisas verdadeiramente essenciais à espera de resolução: eliminação do desemprego, assistência no âmbito da saúde pública, programas de educação motivantes e com organização séria, a começar pela cúpula, essa sim, que bem podia ficar como recorde da asneira e da arrogância.

De há uns anos a esta parte assiste-se ao proliferar de uma autêntica paranóia pelas festas medievais, com ceias e banquetes (só não sei se os convidados comem com a mão…), torneios de armas a cavalo (paradoxalmente com a participação de elementos da GNR),  cortejos com rei, rainha, príncipes e princesas, vilões, infanções, bufões e outros histriões, às vezes até com o pretexto de que se estuda a história local com este regresso ao passado, simulando, ao que se diz, “uma recriação histórica da vivência da corte”. Não me parece que haja nostalgia de uma forma de vida que hoje só podemos considerar boçal, nem que por detrás esteja uma ideologia monárquica, não obstante os cortejos com os autarcas a enfileirar entre a “nobreza”, e o povo isolado, de boca aberta perante os espantalhos das cabeças coroadas. São eventos destinados a entreter, com pompa e circunstância (chegam a participar centenas de “artistas”), os cidadãos que vão repetindo às meninas da TV, estas sim prestando vassalagem,  que acham tudo muito bonito e que é tudo muito importante.

Mais uma vez o supérfluo, enquanto nos falta orçamento para as coisas mais elementares, o que põe em causa, acima de tudo, a responsabilidade da classe política, mesmo a nível local, a quem tem sido confiado o poder: o esquecimento das prioridades a favor das aparências, do que tem mais visibilidade; esquece-se o ser para privilegiar o parecer. “Panem et circenses”, como já referia o romano Juvenal na sua “Sátira X”.

 

 

 

 

 

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