CARTA DE PARIS – Menezes Ferreira – tenente na Grande Guerra – II – por Manuela Degerine

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Menezes Ferreira apresenta o CEP (Corpo Expedicionário Português) num estilo pomposo.

“Sessenta mil homens tisnados por um sol ardente, sessenta mil diplomatas que melhores os não poderia ter enviado a velha Lusitânia para agitar bem alto a sua antiga flâmula de nação independente”[1].

Surpreendemos aqui o capitão em flagrante delito de língua-de-pau. Se “homens tisnados por um sol ardente” opõe os portugueses aos ingleses (cuja pele costuma ser mais clara), também podemos relacionar “diplomatas” com o Império Britânico, no entanto as palavras não correspondem aos factos, porquanto a “nação independente” coloca o CEP sob as ordens do exército inglês, como se fosse uma colónia do Reino Unido, enquanto os “diplomatas” são rapazes que não queriam ir para a guerra, que foram lançados – e mantidos – nas primeiras linhas, que com ânsia desejam regressar à sua vida, mas mostram a combatividade própria da idade e, já que os atacam, se defendem com bravura; Menezes Ferreira revela que alguns são peritos da “Luísa” e da “costureira”: as metralhadoras inglesas.

Situa-se aqui a grande diferença entre os oficiais (de carreira, subalternos ou não) – Menezes Ferreira foi em 1918 promovido a capitão – e os soldados (mobilizados): aqueles escolheram a vida militar e precisam da guerra para subirem na hierarquia, explorarem as teorias na prática, protagonizarem os ideais heróicos; estes são obrigados a combater numa guerra onde perdem a saúde e podem perder a vida. Lembremos que o CEP registará 26,6%[2] de baixas. Mesmo os que regressem a Portugal com saúde aparente, estão surdos, respiraram gases, perderam a memória e, para além disto, durante três anos, trabalharam sem remuneração enquanto, naquele intervalo, a família (pais e irmãos dos solteiros, mulher e filhos dos casados) foi espoliada da sua jovem força de trabalho, o único recurso dos pobres, muito escasso e efémero porquanto, a partir dos quarenta anos, são menos contratados e menos remunerados. (Após o serviço militar os homens dispunham de vinte anos para casar, ter filhos e criá-los: a fome, o alcoolismo, as “sezões”, a tuberculose, a água contaminada, a falta de vacinas, a impossibilidade de recorrer à medicina explicavam o envelhecimento precoce e a baixa esperança de vida.) E os doentes serão uma sobrecarga para a família: “veio de lá sem força” tornou-se a etiqueta do antigo combatente.

Lembremos igualmente que, naquela guerra, os portugueses enfrentaram uma violência até então desconhecida, como todos os outros, porém em condições mais penosas do que eles:

  1. Não levaram equipamento para permanecerem ao ar livre no inverno, dia e noite, com temperaturas negativas.

  2. Não foram nutridos com o seu regime alimentar, ao contrário dos alemães, ingleses, franceses, americanos, cuja comida podia ser mais ou menos má, fria, suja, escassa, intermitente, mas fazia parte dos hábitos. Podemos imaginar o que terá representado para os portugueses de 1917 a dieta inglesa durante dois anos: nem pão, nem fruta, nem hortaliças, nem sardinha, nem morcelas, nem uma gota de azeite… Nada do que então constituía a parca – mas saborosa – alimentação dos camponeses (a maioria dos mobilizados). A própria viagem de Lisboa a Brest é já medida por Menezes Ferreira em “quatro longos dias de “corned beef”[3].

  3. Não foram rendidos. Os franceses, após quinze dias na primeira, passavam oito na segunda ou na terceira linha – para não enlouquecerem. E, a partir de julho de 1915, de quatro em quatro meses, podiam regressar durante seis dias a casa. Ser rendido não representava apenas a possibilidade de dormir algumas noites… Era a descoberta de ainda fazer parte do mundo dos vivos. Ininterruptamente durante oito meses os soldados portugueses somaram frio, medo, revolta, saudades, sobressalto, cadáveres, escombros, enterraram-se na lama, respiraram gases, viram camaradas desaparecer nas crateras, ouviram gritos de decepados que, se os fossem buscar, teriam sobrevivido, sentiram explodir todas as variedades de bombas, receberam no rosto pedaços de corpos, ingeriram a carne moída das latas, perderam a visão, os braços, as pernas, metade do rosto… Perderam a esperança. Dura pena para homens que – até a República os privar dos seus direitos – tinham sido livres.

  4. Puseram-nos a combater numa guerra absurda: não sentiam mais afinidades com os ingleses que lhes davam ordens e “corned beef” do que com os alemães que lhes lançavam bombas. E o benefício para Portugal do sacrifício das suas vidas ainda hoje não foi demonstrado.

Na metáfora “diplomatas” Menezes Ferreira sublinha que defenderam com bravura os interesses portugueses. O que não é decerto falso. Mas quais os benefícios deste esforço? E qual teria sido em contrapartida a plena participação na sociedade dos 55.000 jovens que morreram, ficaram deficientes ou regressaram exaustos? Talvez os filhos e netos que não puderam vir a ter fossem os cientistas, empresários e políticos que fazem falta na sociedade portuguesa do século XXI.

(Continua)

[1] MENEZES FERREIRA, “João Ninguém – soldado na Grande Guerra”, 2ª edição, ed. Folhas e Letras, Lisboa, 2003, p. 13.

[2] FRAGA, Luís Alves de, “Guerra e Marginalidade, O comportamento das tropas portuguesas em França, 1917-1918”, ed. Prefácio, Lisboa, 2003, pp. 121-122.

[3] MENEZES FEREIRA, op. cit., p. 20.

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