CRÓNICAS DO QUOTIDIANO – GRITAM AS PEDRAS! – por Mário de Oliveira

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Ainda tinha restos do cordão umbilical, quando foi encontrado, numa destas geladas noites entre o natal e o final do ano, junto duma casa-colégio de freiras, na Avenida dos Ciprestes, em Setúbal. Moisés – o nome foi-lhe dado no hospital local, para onde foi transportado pela Polícia, depois de alertada por um homem que, alta madrugada, se deslocava na sua bicicleta de pedal, para o trabalho – tem tudo para ser o anti-Moisés bíblico, filho de escravos hebreus que acabou filho adoptivo no palácio do faraó, quando a escravatura e o poder que a produz, ainda se não haviam mascarado de democracia, como sucede neste início de terceiro milénio. No mito bíblico do seu natal, Moisés, salvo das águas, foi abandonado no âmbito duma operação congeminada pela própria mãe, para, desse modo, ser salvo da morte certa, decretada pelo faraó contra todos os filhos masculinos dos escravos hebreus. As parteiras egípcias tinham de asfixiá-los ao nascer, para impedir que os hebreus se multiplicassem e constituíssem séria ameaça ao seu poder monárquico absoluto. Era faraó, mas não dispunha ainda dos meios altamente sofisticados que o poder financeiro hoje dispõe, ao ponto de conseguir impedir que as crianças cheguem sequer a ser concebidas. E às poucas que nascem, apropria-se delas, formata-lhes a mente, para que sejam seus escravos, toda a vida. A menos que tenham a desdita ainda maior de vir a integrar a sua minoria dos privilégios que, então, são logo formatadas só para roubar, matar, destruir, como agentes seus, religiosos e políticos. No caso de Setúbal, a mãe, ainda clandestina, terá querido simplesmente ver-se livre do filho que lhe nasceu, sem reis-magos, sem prendas, sem anjos, sem pastores. Um menino-ninguém que só conta para a estatística. No seu gritante silêncio, filho e mãe denunciam o país, a Europa que somos, depois de séculos e séculos de judeo-cristianismo/ islamismo; um país, uma Europa de escravos, não de irmãos. Por mais que a mensagem do papa para o Dia Mundial da Paz, apregoe, logo em título, “Não escravos, mas irmãos”. Quando se calam os profetas, gritam as pedras!

3 Janº 2015

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