DIA DO TEATRO – O Teatro é um desassossego – por Carlos Loures

Há alfacinhas, muitos deles descendentes de imigrantes vindos das províncias, que sentem como uma mutilação o facto de não ter uma aldeia «sua». Ter nascido em Alvalade, no Areeiro ou nos Anjos não é bem a mesma coisa do que invocar como berço um daqueles topónimos sonantes que, de Norte a Sul, constelam o mapa deste pequeno rectângulo europeu e dos dois adjacentes arquipélagos. Nas festas e nas férias, «vão à terra»… Há lisboetas que trocavam a capitalidade por umas alheiras de Mirandela, um presunto de Lamego ou por um pão de caco da Madeira… Mesmo vindo ao mundo na Alfredo da Costa, na lisboeta freguesia de São Sebastião, dizem ter nascido na terra dos pais.

Mas há os alfacinhas que adoram a sua cidade. Fadistas e não só. Sou um deles. À falta de melhor, não me canso de procurar elementos que valorizem a «minha aldeia» – a Rua dos Douradores e os seus arredores. Num raio de 500 metros, nasceu Fernando de Bulhões, mais conhecido como Santo António, e Pedro Julião, que também deu pelo nome de João XXI. Dois doutores da Igreja, um santo e um papa, e de História é melhor nem falar –  na Sé Catedral o epicentro da revolução de 1383, na Praça do Município a Proclamação da República e no Carmo o episódio mais emblemático do 25 de Abril… E para já, pergunto – que vila ou aldeia foram cenário de novelas ou abrigo de carbonários? Pois na Rua dos Douradores situou Eça de Queirós o escritório do Alves. de Alves & Ca., Alfredo Costa, um dos regicidas, teve ali casa. E, trunfo esmagador, que outra rua ou povoação mereceram de Fernando Pessoa, ou de algum dos seres geniais que o habitavam, um verso? Pois a minha rua deu lugar às desassossegadas reflexões de um tal Bernardo Soares, ajudante de guarda livros. É ele quem diz Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores. E o mundo veio ter com a pachorrenta rua. Já contei num outro blogue como por ali se alojou uma boa parte dos galegos fugidos da moléstia que atacou a agricultura do seu país e que os obrigou a emigrar. http://estrolabio.blogspot.pt/2010/06/little-galiza.html Mais tarde, depois de 1936, os que já estavam implantados solidamente em Lisboa, abrigaram os que se protegiam da moléstia assassina da invasão franquista. E pelos anos 40 chegaram algumas famílias vindas da Formosa. Lembro-me de ver a bandeira da China Nacionalista hasteada num quarto andar da esquina com o Largo de Santa Justa, por cima da Mercearia Nacional. Na Escola Primária da Rua da Madalena, havia crianças chinesas que tentavam ensinar aos portugueses canções em que o canto madrugador dos galos era alvo de uma onomatopeia estranha – han, han, han – em vez do nosso co-ro-có.

Bem este texto era para ser sobre teatro. E vai ser.

Já contei como tendo lido um texto de Gustavo Matos de Sequeira, vim a saber por outras leituras que sob os alicerces do prédio onde nasci, jazem as ruínas de um Pátio de Comédias.

http://aviagemdosargonautas.net/2014/03/27/por-carlos-loures/

Imagem3 E ao consultar as Memórias de Eduardo Brasão , grande actor que, nativo da Costa do Castelo (6 de Fevereiro de 1851), veio ainda criança de colo para a Rua dos Fanqueiros. Morava num quarto andar por cima da alfaiataria de seu pai, especializado em uniformes militares. Um outro rapazito, companheiro de estudos e de diabruras, Augusto Rosa – indígena da Baixa, que viria a ser também um grande actor e que viria a constituir com seu irmão João Rosa e com Eduardo Brasão a companhia teatral Rosas & Brasão. Pois onde iam os rapazes com as famílias? Ao Teatro D. Fernando. E foi com esta informação que soube que, no Largo de Santa Justa, a escassas dezenas de metros do prédio da Rua dos Douradores em que nasci, houve, entre 1849 e 1859 um teatro – o D, Fernando. Edificado no local onde existira a Igreja de Santa Justa, o Teatro Dom Fernando foi inaugurado com o drama Adriana Lecouvreur, de Eugène Scribe e de Ernest Legouvé tendo Emília das Neves como actriz principal. Sendo de ralçar o facto de esta peça ter sido estreada meses antes, mas em 1849, em Paris. Durante a sua curta existência, o espaço optou por um reportório popular, não chegando a atingir grandes êxitos. Em 1859 o edifício foi demolido. Eduardo, Augusto, adoravam ir aos espectáculos do D. Fernando. E Eduardo Brasão diz porquê; Lembro-me que nos camarotes de então, havia um «porta voz» para o botequim donde todos mandavam vir chá, durante os intervalos. E era esse então o meu atractivo pelo Teatro!

O porta-voz era um amplificador mecânico da voz, o pai ou o avô do megafone. Percebe-se o fascínio dos garotos por aquele meioImagem5 espalhafatoso de pedir o chá. No entanto, Eduardo Brasão, Augusto e João Rosa iriam amar o teatro e fazer dele o grande objectivo das suas vidas. Carreiras brilhantes. Brasão representou Shakespeare, Rostand, Dumas e também autores portugueses como Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, João da Câmara e muitos outros. As salas de teatro eram numerosas. Mas os primeiros animatógrafos começaram a aparecer. Brasão ainda tentou o cinema. Diz assim;  Eu que já não sou da era luminosa do progresso, mas daquele tempo tão distante em que se ia veranear para Vale do Pereiro – hoje R. Castilho – em que o comboio era uma ficção doirada das Mil e uma noites, o telégrafo, o assunto de risota da geração da época, e o telefone uma idealização de almas propensas aos sonhos, foi com verdadeiro interesse que aceitei um contrato de filmar na empresa Caldevila do Porto no ano de 1920. Fui fazer o reitor das Pupilas, interessando-me deveras por essa arte tão diferente da teatral, mais restrita, de gestos sóbrios, quase nulos.  Brasão não gostou de se ver. Mas tentou de novo e em Os olhos da alma teve um brilhante desempenho, com êxito inclusive na exibição em Paris, onde um crítico saudava a sua intepretação do papel de moleiro, dont les yeux plongent dans les consciences et regardent au-delà des horizons humains…

Eduardo Brasão, actor excepcional (que vemos num retrato de Columbano). Vizinho ilustre da rua que, apesar de feia, é talvez a mais literária desta pátria que se aninhou em torno da Língua Portuguesa.  Havemos de voltar a este assunto.   É uma ameaça em jeito de promessa.

 

 

 

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