SUBSÍDIO DE DESEMPREGO EUROPEU – PERIGOS À VOLTA DE UMA IDEIA APARENTEMENTE SEDUTORA – por MARGARIDA ANTUNES

Subsídio de desemprego europeu — perigos à volta de uma ideia aparentemente sedutora

 

Margarida Antunes, 6 de abril de 2015

 

A ideia de um sistema de subsídio de desemprego à escala da UE tem tido o apoio e os aplausos de vários quadrantes políticos, dos partidos de esquerda, de direita, de movimentos cívicos, de académicos heterodoxos, é considerada mesmo um sinal de mudança, um reaparecimento da importância do Social na UE. Em Portugal, o PS coloca-a na Agenda para a Década e o governo português acaba de enviar um documento aos outros estados-membro onde, entre outras coisas, a defende.

Mas aquilo que aparentemente é algo sedutor até por parecer uma ideia desviante das ideias-padrão das instituições europeias é na verdade algo que é mais do que um comportamento à Leopardo de Lampedusa. Neste caso, não se pensa que “é preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”, é mais do que isso. Pretende-se antes dar a imagem de que alguma coisa vai mudar, aparentemente para inverter algumas decisões do passado, mas afinal o que se quer é dar mais um passo para adensar a matriz política e ideológica presente da zona euro. Não se deve fazer assim uma leitura apressada deste sistema, deve ser lido no contexto da arquitetura de políticas macroeconómicas da zona euro e no conjunto de medidas tomadas pelas instituições europeias em sequência das crises de 2008 e 2010. Apenas uma leitura integrada permite perceber a dimensão política e de política económica que lhe está subjacente, permite, enfim, conhecer bem os seus fundamentos implícitos e as suas verdadeiras implicações.

Na UE, o subsídio de desemprego tem estado sujeito a uma reconfiguração significativa desde o lançamento da Estratégia Europeia para o Emprego, em 1997. Esta estratégia representa claramente o entendimento assumido quanto ao papel do mercado de trabalho na arquitetura de políticas macroeconómicas da zona euro. Perante uma política monetária comum cujo objetivo único é a estabilidade de preços, políticas orçamentais nacionais fortemente condicionadas pelo cumprimento de indicadores orçamentais, a impossibilidade de desvalorizações cambiais nacionais, escolheu-se então os mercados de trabalho para servirem de via de ajustamento macroeconómico no caso de choques económicos e, em sequência, assumiu-se o salário no essencial como um custo de produção e uma variável de ajustamento, abandonando-se praticamente a ideia de que o salário é também uma componente de rendimento. Para que os mercados de trabalho pudessem cumprir esta função, seria necessário conferir-lhes a flexibilidade necessária e é precisamente a esta estratégia, que aparece nas vésperas da criação da zona euro e sob a capa de uma estratégia para o emprego, que foi atribuído formalmente o objetivo de criar mercados de trabalho que “reajam rapidamente às mudanças económicas”.

A reconfiguração do subsídio de desemprego que ocorre então é o resultado lógico disto. A nova conceção deste subsídio assumida pelas instituições europeias e pelos governos nacionais está associada a uma ideia bem precisa de mercado de trabalho. Este mercado deve ter as características inerentes a um mercado em concorrência perfeita, sendo então o trabalho equiparado a uma qualquer mercadoria e o salário determinado apenas por um simples confronto entre uma procura e uma oferta de trabalho. A situação de equilíbrio é necessariamente uma situação de pleno emprego e, caso não o seja, o desemprego ou é de origem voluntária e de responsabilidade individual, assim entendido porque resulta da recusa do trabalhador em oferecer trabalho em determinadas condições salariais, ou é devido à existência de “imperfeições” exógenas ao mercado de trabalho, incluindo-se nestas precisamente o subsídio de desemprego bem como o salário mínimo, as normas legais de proteção do emprego, as contribuições para a segurança social, os sindicatos. De acordo com esta lógica de mercado de trabalho, o subsídio de desemprego impede o mercado de trabalho de funcionar segundo os mecanismos de concorrência perfeita, uma vez que restringe a oferta de trabalho, ao prolongar e desincentivar a procura de emprego, e limita a flexibilidade salarial, dado que constitui um patamar mínimo abaixo do qual um desempregado não aceita um novo emprego. À luz disto, o subsídio de desemprego faz com que o salário estabelecido seja superior ao salário de equilíbrio de concorrência perfeita e que o nível de emprego seja menor. Por se pensar que tem estas características, o subsídio de desemprego tem sido entendido como limitador da flexibilidade macroeconómica dos mercados de trabalho na UE, ou seja, a capacidade de reação dos salários aos desequilíbrios do mercado de trabalho, o que no seio da união monetária europeia significa que tem limitado a capacidade dos mercados de trabalho de constituírem uma via de ajustamento macroeconómico. Julga-se que uma descida salarial decorrente da existência de desemprego criado por um choque económico levará necessariamente a um aumento do emprego, pelo incentivo criado no setor produtivo da economia.

A forma como o subsídio de desemprego tem sido assumido na UE pode condicionar também as políticas orçamentais nacionais. Com efeito, ao encarar-se o subsídio de desemprego da forma como o é, está-se no essencial a reduzi-lo a um mero subsídio à procura de emprego e a desvalorizar-se claramente uma das suas funções principais, a sua própria razão de ser, o facto de ser um rendimento de substituição de quem perde um emprego. Mas, com isto, está-se a menorizar igualmente o subsídio de desemprego como um estabilizador macroeconómico com funções anticíclicas e, por esta via, a política orçamental não discricionária.

Com a chamada crise das dívidas públicas de 2010, com as soluções propostas pelas instituições europeias, há um reafirmar da conceção de subsídio de desemprego existente e, para além disto, acentua-se a ideia de que este subsídio, sendo uma despesa pública, deve ser restringido. Na verdade, no âmbito das “políticas de consolidação orçamental”, assentes na redução de despesas públicas, as orientações gerais de política económica da UE sugerem que “as prestações sociais deveriam oferecer melhores incentivos com vista a tornar o trabalho remunerador”. Quanto às políticas de flexibilização dos mercados de trabalho, há a recomendação para melhorar a capacidade de resposta futura destes a choques económicos e de promover a flexibilidade dos salários para a baixa, principalmente em estados-membro com défices comerciais. No quadro da correção dos desequilíbrios da zona euro, recomenda-se mesmo que os estados-membro deveriam “[eliminar] as barreiras institucionais a ajustamentos flexíveis dos preços e salários às condições de mercado”.

Com estas recomendações/decisões europeias, o subsídio de desemprego passa a estar sujeito assim a uma dupla condicionalidade: uma que decorre da reafirmação da necessidade de melhorar a flexibilidade dos mercados de trabalho como via para aumentar o emprego e a capacidade de resposta a choques económicos e a outra associada às “políticas de consolidação orçamental” que surgem de forma mais evidente desde 2010. Estas duas condicionalidades não só influenciam o subsídio de desemprego no mesmo sentido, como elas próprias se tornam complementares, reforçando-se mutuamente.

Desde junho de 2012 que está em delineamento uma nova reconfiguração do subsídio de desemprego com o projeto de criação de um sistema de subsídio de desemprego europeu estabelecido ao nível central da UE, projeto que surge no âmbito do plano de uma “união económica e monetária efetiva e aprofundada”, no qual se propõe a criação de um mecanismo de estabilização macroeconómica na zona euro a estabelecer a prazo.

Este plano é fruto de mais um exercício de autorreflexão das instituições europeias sobre os fundamentos da chamada crise das dívidas públicas. A insuficiência de supervisão a nível central das políticas económicas nacionais e de coordenação económica na zona euro e a lentidão na realização de “reformas estruturais” foram então consideradas motivos para “políticas orçamentais laxistas” de alguns estados-membro, para o agravamento dos desequilíbrios externos na zona euro devido ao desfasamento de níveis de competitividade nacionais e para a insuficiente capacidade dos mercados para funcionarem como via de estabilização económica. Mais uma vez, as instituições europeias não questionaram o modelo económico e institucional da zona euro, consideraram antes que havia falhas na aplicação do modelo ou então que esta aplicação ainda estava incompleta sendo então necessário concluí-la. Neste sentido, as soluções apresentadas neste plano visam pretensamente a “melhoria” da governação económica da zona euro através do reforço da coordenação ex-ante das políticas económicas nacionais que passaria a abranger também as “reformas estruturais” e uma maior supervisão ao nível central quer das “reformas estruturais” de modo a flexibilizar e a liberalizar mais os mercados quer das políticas orçamentais nacionais com o objetivo de reduzir a sua capacidade de intervenção na economia e necessariamente a dos governos nacionais.

É neste contexto então que se prevê a criação a médio prazo de um mecanismo de estabilização macroeconómica na zona euro, que facilite ajustamentos no caso de choques económicos. Neste âmbito, propõe-se a criação ou de um sistema de transferências dependentes das flutuações da atividade económica em cada um dos estados-membro ou de um sistema de subsídio de desemprego europeu, gerido ao nível da UE ou apenas da zona euro, complementar ou substituto parcial dos sistemas de subsídio de desemprego nacionais. Este último sistema parece desde o início ser apontado como o possível modelo a estabelecer, tendo sido sucessivamente objeto de estudo na anterior Comissão Europeia e em especial na ex-Direção Geral do Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão (DGEASI).

Este mecanismo de estabilização macroeconómica é visto pelas instituições europeias em interação com a realização de “reformas estruturais”, pois por um lado julga-se que a melhoria do funcionamento dos mercados, devida à sua liberalização e flexibilização, permite aumentar a sua capacidade de absorção de choques económicos, reduzindo então a necessidade deste mecanismo. Por outro, o estabelecimento a nível central de um instrumento com o objetivo de estabilização macroeconómica, nas palavras do anterior presidente do Conselho Europeu Van Rompuy, “encorajaria os estados-membro… a prosseguir políticas orçamentais e reformas estruturais sãs de acordo com as suas obrigações contratuais”. No quadro das “reformas estruturais” e quanto aos sistemas de subsídio de desemprego nacionais, isto significa reduzir praticamente este subsídio a um mero subsídio à procura de emprego (restringindo ainda mais as condições de elegibilidade, o montante do subsídio, o período de concessão e a margem de recusa de emprego) e, deste modo, esvaziá-lo da sua capacidade estabilizadora de rendimentos de quem perde o emprego e, macroeconomicamente, da sua função de estabilizador automático de conjuntura. Ao ser assim, simultaneamente criam-se condições de maior flexibilização salarial, que é afinal o objetivo explícito das “reformas estruturais” do mercado de trabalho.

Quanto às “obrigações contratuais” das políticas orçamentais, inscritas no Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (TECG), estas não podem ser desligadas das anteriores. Com efeito, o seu cumprimento implica restringir as despesas públicas com características de estabilizador de conjuntura ao longo dos ciclos económicos, como é o caso do subsídio de desemprego. Por isto, propõe-se agora, também para impedir “comportamentos laxistas” de governos nacionais, que a capacidade estabilizadora do subsídio de desemprego possa ser gerida ao nível da UE, através da criação de um sistema de subsídio de desemprego europeu, evitando-se assim quer efeitos de histerese nas despesas públicas com os subsídios de desemprego nacionais quer efeitos desincentivadores da procura de emprego após períodos de recessão económica. Na verdade, isto significa uma desvalorização das políticas orçamentais nacionais via estabilizadores automáticos, o que compromete ainda mais a capacidade de atuação destas políticas, já por si condicionadas pelas regras inscritas no TECG.

Este sistema está pensado principalmente para períodos de “normalidade” em que pode haver eventualmente choques económicos específicos, que atingem apenas isoladamente um ou outro país, e não para situações como a presente. Sendo o sistema simétrico ao longo do ciclo económico, espera-se que cada país vá alternando situações de beneficiário líquido e de contribuinte líquido. Adicionalmente, tal como é bem frisado nos documentos das instituições europeias, este sistema não pode significar transferências unidirecionais permanentes entre países, ou seja, não pode ser visto como um sistema de redistribuição de fundos entre os estados-membro da zona euro. Apesar desta intenção devidamente expressa, a Alemanha tem-se mostrado bastante cética em relação à criação de qualquer tipo de mecanismo de estabilização orçamental na zona euro, precisamente porque, argumenta, teme que possa significar isso mesmo, mais um instrumento de redistribuição de fundos entre os estados-membro.

Pese embora as reticências alemãs, o debate sobre um sistema de subsídio de desemprego europeu continuou no seio da anterior Comissão Europeia. De entre as várias propostas discutidas, há uma proposta que parece ter tido a preferência da ex-DGEASI. O autor, Sebastien Dullien, sugere um sistema de subsídio de desemprego europeu que reproduz ao nível da zona euro a capacidade de estabilização automática dos sistemas de subsídio de desemprego nacionais, considerando-o assim um substituto parcial destes mesmos sistemas. De acordo com esta proposta, cada desempregado em qualquer estado-membro da zona euro receberia um subsídio de desemprego do sistema europeu, cujo montante corresponderia a cinquenta por cento do salário médio recebido nos doze meses anteriores. Esta duração é justificada com a necessidade de impedir o subsídio de desemprego de criar desincentivos à procura de emprego e os governos nacionais de adiarem políticas de combate ao desemprego de longa duração, evitando-se assim comportamentos de risco moral por parte dos desempregados e governos nacionais. Este sistema seria financiado com contribuições sobre os salários brutos pagas pelos trabalhadores e ou pelos empregadores que seriam subtraídas às contribuições efetuadas para os sistemas nacionais. Com estes, cada um dos estados-membro poderia complementar o subsídio de desemprego europeu permitindo que a taxa de substituição final fosse superior à do sistema europeu e alargar o período de concessão para além dos doze meses. Esta proposta não exclui assim a possibilidade de o sistema europeu substituir na totalidade os sistemas nacionais, o que poderia pôr em causa a existência nacional de uma proteção pública no desemprego.

Até este momento, a atual Comissão Europeia ainda não se pronunciou abertamente sobre esta questão. Em fevereiro passado, numa analytical note sobre os “próximos passos para a melhoria da governação económica da zona euro”, escrita por Jean-Claude Juncker, em cooperação com os outros três presidentes (Donald Tusk, Jeroen Dijsselbloem e Mario Draghi), considerou-se que os documentos fundamentais sobre o plano de uma “união económica e monetária efetiva e aprofundada” elaborados pela anterior Comissão Europeia e pelos quatro presidentes de então (Herman Van Rompuy, José Manuel Durão Barroso, Jean-Claude Juncker e Mario Draghi) continuam válidos. É verdade que já se conhece uma alteração, uma alteração de ordem cosmética, agora trata-se de um plano para uma “união económica e monetária mais profunda e mais justa”. Em junho próximo está prevista a divulgação de um relatório dos quatro presidentes sobre o futuro da zona euro. Atendendo aos trabalhos preparatórios é de esperar que algo seja dito sobre esta questão. Não é de esperar, no entanto, que na hipótese de se dar continuidade à ideia de um sistema de subsídio de desemprego europeu a sua conceção seja muito diferente da até agora avançada. Na analytical note já referida, insiste-se na ideia de que a “rigidez” dos mercados de trabalho e de produtos e o excessivo custo do trabalho em alguns estados-membro foram fatores determinantes da crise do euro. Sequencialmente, afirma-se a importância de “no curto prazo, implementar uma estratégia consistente em torno do ‘triângulo virtuoso’ de reformas estruturais, investimento e responsabilidade orçamental e, neste contexto, avançar para compromissos mais efetivos para reformas estruturais que fomentem o crescimento na zona euro”.

A ser concretizada a ideia de um subsídio de desemprego europeu nos moldes e com o enquadramento em que está pensado, no contexto de “reformas estruturais” e de “políticas de consolidação orçamental” nacionais, perspetiva-se um enfraquecimento dos sistemas de subsídio de desemprego nacionais, sem estar garantido qualquer tipo de reforço correspondente ao nível central. Este enfraquecimento dos sistemas nacionais insere-se claramente no objetivo político mais geral de redução da margem de manobra de decisão e de atuação dos governos nacionais em prol da decisão e atuação dos mercados, mesmo que aparentemente signifique uma transferência de soberania para as instituições europeias.

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