CONTOS & CRÓNICAS – “O cheiro a batata tirada à terra” – por Eva Cruz

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É por estas alturas, princípios de Junho, que se tiram as batatas. Há quem semeie no cedo e já tenha batata nova na prateleira ou na barrela, como acontece nas aldeias onde quase tudo se passa como antigamente.

 As tradições de cultivo assentam ainda nos costumes e sabedoria dos mais velhos. Hoje o tractor e o semeador amansam muito o trabalho da enxada que na mão do cavador abria outrora os sulcos e as leivas.

O batatal a pouco e pouco vai crescendo, batatinha quando nasce esparrama pelo chão, e aparecem as primeiras flores brancas ou rosadas conforme a batata é branca ou vermelha. Mais tarde, no meio da folhagem, nasce um fruto que não é mais do que uma pequenina bola verde ou amarelada. E assim o batatal se transforma num jardim de verdura salpicado de outras cores discretas.

Atento, o lavrador vai sachando e regando as batatas, regalando os olhos com a farta nascença que se adivinha pela pujança da rama. E pela rama se vão dando palpites de boa ou má colheita.

 Na altura da flor há surpresas. O maior inimigo do batatal é um bichinho alaranjado, oval, de cabeça escura com riscas negras nas asas duras. Uma beleza! O escaravelho. Começa a sua vida em pequenos ninhos de ovos amarelos agarrados à folha, que passam a larvas alaranjadas, volumosas e repelentes que as crianças gostavam de esmagar com o pé.

Antes que a rama definhe e afecte o crescimento do tubérculo debaixo da terra há que dar solução a esta praga. O batatal é borrifado com o temível remédio do escaravelho. Mas tem de haver cuidados especiais porque o produto é muito venenoso. Nada se deve colher nas redondezas durante uns dias, e melhor será esperar por alguma chuva que venha lavar o veneno.

 Mas o remédio do escaravelho não serve só para matar estes bichos. Também é muitas vezes tentação a jeito para a morte de pessoas. Foi há muitos anos, era eu menina, uma criança que teve a sorte de viver no campo e de nele enraizar o pensamento, o sentimento e o caminho da vida. Numa tiragem de batatas, uma jornaleira deu a triste notícia sobre uma rapariga, ainda nova, que eu conhecia. A Maria matou-se com remédio do escaravelho.

 Pararam as enxadas que arrancavam da terra os cachos de tubérculos, brancos ou vermelhos, pequenos ou grandes, a pensar noutra cova que haviam de abrir. Pararam as mãos de crianças e adultos e também o olho da enxada de separar as batatas grandes das pequenas ou cortadas pelo gume e que  seriam as primeiras a ser comidas. Dizem que estava grávida e não se sabia quem era o pai.

Não à boca cheia mas por entre dentes toda a gente sabia quem era o pai. Um homem casado. Nessa altura havia muitos filhos de pais incógnitos, ainda que bem conhecidos, se mais não fosse pela pinta.

 Nesses tempos havia poucas armas e muitos suicídios eram com o remédio do escaravelho ou por afogamento no rio, sobretudo quando ia a monte! Mais do que a morte da mãe, mexeu comigo a morte da criança, talvez por perder para sempre o direito de brincar…

Hoje, o cheiro da terra revolvida pela tiragem das batatas desperta-me na memória aquela promessa de vida e apetece-me esborrachar os escaravelhos.

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