A CRIAÇÃO DE MOEDA, BANCA E CRISES: UMA OUTRA PERSPECTIVA – UMA NOVA SÉRIE SOBRE QUESTÕES DE ECONOMIA – 4. CONTRIBUIÇÕES PARA UMA OUTRA PERSPECTIVA DA CRISE – III

Falareconomia1

A Criação de Moeda, Banca e Crises: uma outra perspectiva

Uma nova série sobre questões de Economia

 4. Contribuições para uma outra perspetiva da crise

(CONTINUAÇÃO)

4º Dia de diálogo

Não, não tenho. Mas não sei bem se não tenho ou se estou enganado a pensar que não tenho. Mas já agora: antes de pegar nesta vossa última afirmação que merece outros desenvolvimentos, mesmo que curtos, no âmbito destes nossos diálogos, não estarão, intencionalmente ou não, a criar uma confusão com o crédito. Não estará Ricardo a falar do multiplicador de crédito, para usarmos uma linguagem mais moderna?

Ótimo. E claro que está a ter uma boa dimensão dos problemas, por vezes até mais larga que as nossas. Felicito-o. Tens razão. Mas, esta é uma grande questão. Imagine-se então que alguém prestou um serviço a alguém. Ganhou 1.000 unidades monetárias, mas não os gasta e, deposita-os. O banco, a seguir e com os fundos que ficaram disponíveis, 865 euros, isto é, o valor do depósito, de 1.000 unidades, menos as reservas obrigatórias ou prudenciais que é obrigado a constituir, 13,5% dos depósitos, ou seja 135 euros, concede um crédito a um empresário. Criou alguma tensão no mercado dos bens? Claro que não, haveria bens no valor de 1.000 euros que estariam para ser consumidos por si e não foram. Foram consumidos a seguir, 865 pelo empresário a quem o banco concedeu o crédito. Ficaram 135 dormentes, sem comprador. O crédito deslocou o seu consumo de si para o nosso empresário. Esta é a lógica de Ricardo. Imaginemos então que a seguir comprou bens nesse montante. O dinheiro voltou ao nosso banco ou a outro. Tanto faz. Imaginemos que foi ao mesmo para simplificar as coisas. A seguir, um outro empresário solícita um crédito, agora de 865×0,865, ou seja 748,225. Este pega no dinheiro e compra bens existentes. Quem recebe o dinheiro deposita-o no banco, em vez de os gastar em bens de valor equivalente. Um depósito, um crédito a seguir, mas de menor montante, pois cada depósito transforma-se em crédito no valor de 0,865 do respetivo depósito, isto é, cada depósito transforma-se numa transferência de poder de compra, mas de valor inferior. Um outro empresário solícita um crédito. É-lhe dado e no valor agora de 748,225x 0,865, ou seja de 647,21. De novo compra bens já existentes e quem ficou com dinheiro em vez de comprar bens equivalentes, deposita-o. Deposita pois 647,21. Desloca, difere no tempo o seu poder de compra atual. Um outro crédito se vem juntar aos anteriores, agora de 559,840 e assim sucessivamente, até se atingir o último crédito, a ser vizinho de zero. Consequência: os depósitos são 1.000 + 1000 x 0,865 + 1000 x (0,865) 2 +…+1000 x (0,865)n o que dá um total de aproximadamente 7.4075 enquanto os créditos feitos foram de 865 + 865 x 0,865 + 865 x (0,865)2 +…+ 865 x (0,865)n, o que dá um total de aproximadamente 6.4075. Ou seja, nenhuma inflação aqui. Estás a acompanhar-nos?

Sim, estou, mas vá mais devagar. Se assim é, porquê o bank running, a corrida aos bancos que tanta gente teme e que levou agora a medidas de emergência, como por exemplo, nos Estados Unidos, na Inglaterra?

Calma, rapaz. Aqui temos uma diferença. Imagina que os bancos colocaram os seus créditos em mãos duvidosas. Cada depósito correspondeu, e eu disse-o, a uma transferência no espaço e não no tempo de um dado poder de compra, macroeconomicamente falando, é claro. Ora, se o banco pode falir, se não lhe pagarem o que lhe devem, os depositantes também ficam sem nada. E aí vão a correr a levantar o dinheiro na esperança de ainda irem a tempo. E surpresa, não está lá. O problema que aqui estou a levantar não é esse, é que estes créditos não deram azo a inflação, não deram azo a crescimento. Repara-se que no nosso exemplo, o rácio, e isto é muito importante, entre os créditos e os depósitos é próximo de 1, mas inferior à unidade. A probabilidade de isto acontecer é pequena e quando acontece tem uma solução simples: acréscimo de liquidez. Foi o que se fez no caso presente, milhares de milhões de milhões, muitos milhares de milhões introduzidos. Se o problema fosse apenas um problema de liquidez, estava a questão resolvida e a crise desaparecia

Por favor, não me confundam. Ora o que me estão aqui a apresentar é a teoria do multiplicar de crédito, segundo a qual são os depósitos que geram créditos e portanto nada a temer por aqui, a menos que haja vendaval na economia e então do que precisamos de saber é onde é que se formam essas correntes de fortes ventos. Antes falaram-me de overtrading e pareceu‑me que se estavam a referir ao divisor de crédito. Ora, teoria do multiplicador de crédito, teoria do divisor de crédito, ambas dão o mesmo resultado final quanto aos créditos criados. Se em ambos os casos se obtém o mesmo resultado, sendo certo pelo que explica que o multiplicador de crédito não alarga a nossa compreensão da crise, será então que o divisor nos ajudaria? Será que me podem dizer alguma coisa sobre isto?

Bem, estás-nos a pedir muito. Todos nós sabemos que nas Universidades se passa muito rapidamente sobre estas matérias que, de resto, parecem ser para os estudantes um pouco abstratas. Pelo que nos dizes e questionas, pensamos haver aí alguma confusão. Pedimos-te então paciência para nos aturar numa explicação que pode ser longa.

Tenho tempo, professores. Esclareçam-me se é que isso é possível. Quanto ao tempo, não se preocupem, é comigo.

O que nos pedes não vai ser fácil, nem de explicar, nem talvez de entender, tendo em conta as ideias feitas que temos sobre a matéria. Mas aventuremo-nos na explicação, mas tendo sempre presente que um banqueiro pode criar moeda sem poder ser causado de falsário. Pode conceder empréstimos sobre o que não tem, sobre o que não dispõe sem poder ser acusado de escroque. Está no seu direito, é mesmo a sua principal função é o que nos dizem os bons manuais sobre moeda.

O quê, pergunta o aluno.

Deixa estar, Ouve primeiro a nossa explicação sobre o que nos pedes e verás depois se ficas ou não esclarecido.

Depois de introduzirmos algumas noções de base sobre moeda, estudaremos a criação de moeda escritural no quadro de várias hipóteses. Aqui, tomaremos como primeira base de explicação que temos uma só rede de banca comercial e o banco central em que a propensão a reter notas de banco central pelos agentes económicos é de 15% dos créditos criados e que a constituição de reservas obrigatórias face aos depósitos constituídos na banca é de 0,02 do valor desses depósitos. Depois abandonaremos esta hipótese simplificadora e assumiremos duas redes de banca comercial.

II. Crédito bancário e criação monetária

II. 1. Questões de base: os conceitos de base monetária e massa monetária.

II.1.1 Algumas relações elementares

Seja M=D +N onde N representa a parte da massa monetária em circulação constituída por notas e moedas, D representa os depósitos à vista e M representa a massa monetária na economia.

Seja H= R+N onde H representa a base monetária, construída por N e por R, em que R representa a moeda banco central total que é propriedade dos bancos comerciais e que está depositada junto do banco central a título de reservas obrigatórias.

Seja h a proporção das transações que os agentes não-financeiros liquidam com a utilização de notas, proporção esta que se considera constante. Temos assim N=hM.

Por substituição na relação de M temos:

M=D+hM ou ainda:

M(1-h)= D. Os depósitos são pois aqui apresentados como uma função de M.

Por seu lado as reservas obrigatórias detidas no banco central são uma função dos depósitos e R= r D, onde representa a percentagem em reservas obrigatórias por unidade monetária depositada na banca comercial.

H vem então:

H= rD+ N

H=rD+hM mas como D= (1-h) M temos então H:

H= r (1-h) M+h M= M [h+ (r (1-h)]

Desta igualdade tiramos duas relações:

Relação 1:

H= M [h+ (r (1-h)]

que se pode ler como expressando que a massa de moeda banco central emitida é uma função da massa monetária M criada na economia, mais precisamente no sistema bancário.

Relação 2:

criação monetária - II

Que se pode ler como expressando que a massa monetária na economia é uma função da massa de moeda, notas, emitida pelo banco central, o que significa o controle do banco central sobre a economia uma vez que através dele há um controlo eficaz sobre a massa monetária (M) presente na economia. Ao valor assumido por k=  que obrigatoriamente é maior que a unidade chama-se multiplicador de crédito como veremos depois.

Ao inverso de k, obrigatoriamente menor que a unidade, chama-se divisor de crédito e expressa a quantidade de moeda banco central que é necessário criar por cada unidade de massa monetária criada no sistema como um todo. A relação 1 pode então ser reescrita tendo em conta a definição de k da seguinte forma:

criação monetária - III

e a criação monetária - IVchama-se divisor de crédito, uma vez que expressa a quantidade de moeda central por unidade de massa monetária criada no e pelo sistema.

Existe pois uma relação ao nível macroeconómico entre estas duas variáveis, entre a massa monetária e a base monetária, que depende dos fatores da liquidez bancária. Porém, o facto de se dizer que há uma relação entre base monetária e massa monetária não significa que se estabeleça o sentido da causalidade.

Aqueles que privilegiam a relação M=k H consideram que a relação de causalidade vai de H para M, ou seja, que H assume o estatuto de variável explicativa e que M assume o papel de variável explicada. Inversamente, aqueles que privilegiam a relação H= (1/k) M consideram que a variável explicativa, dita também variável independente, é M e que a variável explicada ou variável dependente é a variável emissão de moeda pelo Banco Central.

No caso de M=kH onde k representa o multiplicador de crédito, a quantidade de moeda em circulação, M, é pois uma função da quantidade de moeda emitida pelo Banco Central e de um coeficiente k considerado constante. Este coeficiente, k, pode pois ser interpretado como sendo a quantidade de moeda escritural criada pelo sistema bancário por unidade de moeda banco central emitida. Neste caso pode-se afirmar que se considera aqui que os bancos comerciais são agentes passivos, uma vez que estão pré-condicionados por uma restrição de recursos. Dito de outra forma, só podem distribuir crédito a partir de liquidez pré-existente em moeda central.

No caso de H= M (1/k) temos a lógica inversa. Nesta hipótese as responsabilidades da dinâmica da criação monetária é principalmente devida a atividade da banca comercial. Com efeito antes de concederem créditos, antes de criarem moeda escritural, os bancos comerciais não se preocupam com a existência ou não dos recursos próprios, de reservas excedentárias, como no caso anterior, para poderem conceder crédito. Só depois é que se preocupam em encontrar os meios de refinanciamento que suportem os créditos concedidos. Mais tarde veremos melhor, com um exemplo numérico, a diferença existente quanto à dinâmica na criação monetária que envolve cada uma destas duas hipóteses, a do multiplicador e a do divisor de crédito.

(continua)

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Para ler a parte II deste texto, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, cliquem no link:

A CRIAÇÃO DE MOEDA, BANCA E CRISES: UMA OUTRA PERSPECTIVA – UMA NOVA SÉRIE SOBRE QUESTÕES DE ECONOMIA – 4. CONTRIBUIÇÕES PARA UMA OUTRA PERSPECTIVA DA CRISE – II

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