Já me tinha cansado de escrever crónicas sobre o 25 de Abril. Tinha dito a mim próprio, nunca mais, nunca mais falarei deste dia. Sendo um dia que simbolicamente, no caso português, o 25 de Abril, dia de portas mil à liberdade abertas, é pois o filho de todo este nosso País que esse Abril representa, concebido na dor de muitos anos de sofrimento e parido por todo um povo ao longo das ruas e avenidas deste país, ao longo de meses e anos de luta, é pois um filho de todos nós e a quem me apetece perguntar, onde estás, filho nosso ?
Dois acontecimentos geraram a minha apetência por mais um texto sobre Abril de portas mil à liberdade abertas. Uma entrevista feita por uma criança filha de amigos meus sobre o 25 de Abril e o despedimento repentino e sem nenhuma razão profissional que o justifique de duas pessoas que conheço que são despedidas, uma por se ter recusado a trabalhar 14 horas no 25 de Abril, e gratuitamente, e a segunda por ficar solidária com a primeira.
Uma entrevista feita a um miúdo de 11 anos sobre o 25 de Abril para um trabalho seu sobre essa data que passo a reproduzir fez-me tanta dor que me apetece recolocar a questão acima; onde está tu, 25 de Abril, filho nosso e de todo um povo, que já ninguém te vê? A razão de ser da minha pergunta aparece depois da entrevista aqui reproduzida.
1.Entrevista conduzida por um aluno
História e Geografia de Portugal
O 25 de abril de 1974
Entrevista realizada por David Lopes (ENT), 6ºA, Nº5
11 de abril de 2016
O meu entrevistado chama-se Júlio Mota (JM), é um grande amigo meu e da minha família, tinha 31 anos no 25 de abril de 1974, morava em Lisboa e era professor universitário.
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ENT – Onde estava e o que estava a fazer na madrugada do 25 de abril de 1974?
JM – Curiosamente nessa noite estava a discutir a possibilidade de uma revolução.
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ENT – Como soube o que estava a acontecer, o que viu na rua e o que ouviu?
JM – Soube por um estudante que veio a correr para casa dizendo “há tropas na rua”. Saímos todos e deambulámos por essa Lisboa. Muita gente fez o mesmo e madrugada fora, as ruas de Lisboa estiveram cheias de gente.
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ENT – O que pensou, o que sentiu e como reagiu aos acontecimentos desse dia?
JM – Levaria páginas a falar disso. Como toda a gente na rua, senti o perfume da Liberdade, durante muitos anos amordaçada. Fomos nesse dia parar ao Largo do Carmo. Houve aí vários tiros.
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ENT – O que mais o impressionou e o que mudou para si nesse momento?
JM – O que mais me impressionou foi a alegria transbordante de milhares de pessoas na rua a gritarem liberdade e serem correspondidos pelos soldados da mesma forma. Muita gente mesmo de flores na mãos, cravos vermelhos sobretudo.
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ENT – Na tarde do dia 25 de abril de 1974 os agentes da PIDE ainda deixaram marcas da sua atuação, tendo daí resultado 4 mortos e vários feridos. Foi também perseguido, preso ou torturado pela PIDE? Se a resposta é sim, quais foram as razões? O que aconteceu?
JM – Houve tiros na rua António Maria Cardoso e junto ao teatro Trindade. Era espantoso, os carrascos do povo afluíam à Pide, como os ratos à toca. Daí as cenas de tiros nessa zona. O historiador Fernando Rosas teria sido aí baleado, se a memória não me engana. Quanto a ser preso, fui preso para interrogatório durante uma noite inteira. Porquê? Porque participei numa manifestação de estudantes aquando da inauguração da Reitoria da Universidade Clássica. Havia muitos estudantes mas apenas alguns foram presos. Eu fui um deles. Explicação plausível: era operário, de fracos recursos. Vestia de forma diferente, de gente sem dinheiro. Não era pois gente rica. Poderia ser um perigoso comunista. Identificado, deixaram-me ir embora. Foram no dia seguinte à fábrica onde trabalhava, em Alvalade, para me prenderem e prenderam. Uma tarde de espera já na PIDE, uma noite inteira de interrogatório intenso. Confirmaram muitas das minhas afirmações. Não era um agitador político. Era um operário católico, amigo de freiras, estudante à noite, que nessa manhã ia à missa, à Igreja do Campo Grande, a 150 metros dali. E que não sabia nada daquilo, estava ali a ver, pois nunca tinha visto uma manifestação! Esta é a minha narrativa à PIDE
E a ajudar tudo isto, o meu patrão quando me foram prender terá dito: então, levam-me o meu melhor operário? Ora, um patrão não se poria a defender um comunista, um agitador político. Tudo ajudou a que pudesse, 40 horas depois, sair da rua António Maria Cardoso livre. Também aqui impossível descrever o medo que de mim se apossou naquelas 40 horas.
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ENT – Fala de um “interrogatório intenso”, imagino um ambiente hostil e intimidatório. Era assim? Foram violentos?
JM – Não. Mas a minha história de estar naquele sítio não encaixava. Estar a ver uma manifestação. Mas devem ter confirmado se no lar de freiras me conheciam. Nesse lar de freiras, quando era marçano e elas eram minhas clientes, estava autorizado a ir lá comer sempre que quisesse. Nunca fui, mas isso é irrelevante, Ora católico, indo à missa, respeitado pelo patrão, não poderia ser um revolucionário, um bombista. Simplesmente, se a minha narrativa tivesse uma falha sequer, seria mandado para o inferno de um interrogatório a outro nível, seguramente violento. E não era a mesma coisa ser interrogado como operário infiltrado no meio de estudantes ou como um filho da grande burguesia da época e futuro doutor. Era bem diferente.
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ENT – Foi a única vez que teve confronto directo com a PIDE, ou por constar nos ficheiros este episódio que relatou, por vezes era chamado ou procurado para novos interrogatórios?