A UBERIZAÇÃO DA EUROPA VISTA ATRAVÉS DAS LEIS DO TRABALHO IMPOSTAS EM FRANÇA E NA ITÁLIA – 3. A LEI EL KHOMRI OU COMO SE PODE ACABAR COM O CÓDIGO DO TRABALHO – ECONOMISTAS ATERRADOS – I

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Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

introduçãoA lei El Khomri ou como se pode acabar com o Código do Trabalho

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Les Économistes Atterrés, La loi El Khomri ou comment en finir avec le Code du travail

25 de Fevereiro de 2016

 

Desde há três anos para cá, o Medef tornou-se extremamente agressivo  em  pôr em causa o modelo social francês, para reclamar baixas de impostos e das contribuições sociais, para exigir a revisão do Direito do Trabalho. Apoiando-se sobre a sua vasta rede de meios de comunicação social e de economistas, pretende co-gerir o Estado impondo a redução da protecção social, o adiamento da idade de passagem à reforma, a redução das despesas públicas. Esquecendo a sua responsabilidade na crise financeira (ter deixado os mercados financeiros imporem rentabilidades excessivas às empresas, ter deixado os bancos especular sobre os mercados em vez de se desenvolver o crédito às empresas, não ter reagido face à globalização financeira que mergulha as economias na instabilidade, ter organizado a deslocalização da indústria, ter aceite o desmantelamento da política industrial francesa, etc.), o patronato e a tecnocracia encontraram então os culpados: os salários excessivos dos assalariados (em especial dos assalariados de baixos salários) e o direito do trabalho. Assim, o Medef lançou-se numa campanha agressiva: só os chefes das empresas seriam produtivos e inovadores; devem ser os únicos mestres à frente das actividades. Estes só criarão empregos se as suas exigências forem satisfeitas.

Tendo renunciando a impulsionar uma nova dinâmica produtiva, a desencadear uma ruptura ecológica e social, o governo cede a esta campanha: baixa de 40 mil milhões dos impostos e de contribuições das empresas, financiadas pela diminuição da despesa pública e  hoje põe profundamente em causa a lei laboral.

Mas, vê-se desde há dois anos, esta estratégia é ilusória; o desemprego não recuou. As políticas de austeridade reprimem a procura de modo que o emprego não melhora a sua posição, não há retoma, as reformas do direito do trabalho já accionadas o que fizeram foi multiplicar o número de empregos precários [1]. Mesmo do ponto de vista do patronato, os seus projectos estão sem saída: o lucro das empresas não se consegue recuperar numa economia em depressão; um sistema que incentiva os empregos precários e mal pagos não permite a subida na gama das produções; a instabilidade e a rapacidade das Finanças jogam contra a produção. Como mobilizar os empregados nas empresas, reivindicando o direito de despedir sem justificação? Será necessário evocar o medo do custo dos despedimentos  para explicar que as empresas se recusam a contratar e a crescer, enquanto esse medo não funcionou entre 1998 e 2002 onde o emprego na França aumentou 10%?

Hoje, um novo passo é avançado, pelo projecto de reforma do direito do trabalho, que será apresentado a 9 de Março ao Conselho de Ministros. Este projecto aceita os pontos fortes da campanha do patronato: é o peso do código do trabalho, que seria responsável pelo desemprego; este deverá segurizar os despedimentos (ou seja, facilitar os despedimentos); deve permitir a cada empresa fazer  o seu próprio direito.

Trata-se na verdade de uma ruptura essencial com os princípios básicos, e não, como se pretendeu, “de uma simplificação” ou de uma simples “limpeza” de um Código que se teria tornado muito complexo. Esta ruptura visa enfraquecer, e  sem precedentes,  as relações de força entre assalariados e capital. Este enfraquecimento também não procura ser dissimulado: não há nenhuma verdadeira contrapartida proposta, excepto uma pseudo-conta pessoal de actividade’ (que apenas faz lembrar as disposições existentes para a formação e as condições penosas). Tanto mais quanto o governo faz ao mesmo tempo pressão para que as negociações com Unedic conduzam a uma redução significativa das indemnizações para os desempregados. A estratégia é clara: sob o pretexto do combate ao desempego, trata-se de impor aos empregados (individualmente ou globalmente) significativas baixas de salário, aumentos na duração do trabalho e a deterioração das suas condições de trabalho e do seu estatuto. O oposto, portanto, a um projecto que se queira socialista.

Inverter a hierarquia das normas

O ponto-chave do projecto é o da inversão das normas. Até agora, o direito do trabalho baseou-se na hierarquia das normas. Devido a subordinação dos trabalhadores, a lei protegia-os ao afirmar o primado da lei sobre os acordos de ramo e deste sobre os  acordos de empresa. Segundo o princípio de favor, os acordos de ramo não podem prever senão condições que sejam mais favoráveis para os trabalhadores do que as regras de ordem superior. Assim, a lei impede as empresas de utilizarem a relação de forças contra os empregados que estão numa posição de fraqueza. O projecto de lei, seguindo as exigências dos empregadores, quer reverter essa hierarquia. Os acordos de empresa podem admitir dispositivos menos favoráveis aos trabalhadores do que o acordo geral e os acordos de sector ou ramo de actividade. Então, dar relevância aos acordos das empresas, individualmente, colocando-os juridicamente acima dos acordos gerais estabelecidos pela lei do Trabalho pressupõe que os patrões  e os seus trabalhadores estejam em pé de igualdade, que não hajam pois relações de subordinação.

A lei prevê que o Código do trabalho será reescrito durante os dois anos próximos por uma comissão de peritos. Em cada domínio, serão distinguidos três níveis: regras obrigatórias de ordem pública, o campo da negociação colectiva e disposições supletivas que serão aplicadas se a negociação não for alcançada. Isso permitirá baixar as protecções dos assalariados, porque as disposições supletivas serão mais baixas que as disposições obrigatórias actuais; poderão certamente ser melhoradas pelas negociações colectivas, mas também, de acordo com a relação de forças, serão  ainda enfraquecidas.

A campanha organizada pelo patronato pretende que é o peso e a complexidade do Código de trabalho que prejudica o emprego e a contratação. Um código a três níveis não será mais simples. O código poderia ter-se tornado mais simples e mais protector. Por exemplo, abolindo as formas específicas de emprego para reafirmar a primazia do CDI, do contrato de duração indeterminada.

A nova redacção começou pela matéria de duração do trabalho. Assim, a disposição de ordem pública prevê uma duração de trabalho diária máxima de 10 horas, mas um acordo de empresa (ou na sua ausência, uma decisão do director da empresa aceite pela autoridade administrativa) pode levar a uma duração diária de 12 horas. A duração máxima semanal (isto em 16 semanas em vez de 12) pode ser aumentada de 44 para 46 horas numa base semanal. Finalmente a modulação pode ser feita ao longo de um período de três anos, sempre depois da aprovação pela empresa.

A utilização de cargas horárias para além das 46 horas sobre 16 semanas poderá  ser autorizada por decreto “a título excepcional em certos sectores, certas regiões ou nalgumas empresas”. Sobre uma semana, as horas semanais de trabalho, actualmente limitadas a 48 horas, podem ir até às 60 horas ” em caso de circunstâncias excepcionais e enquanto estas durarem “. E isso enquanto o número máximo de horas limite por semana, arrancada a ferros em Bruxelas por Jacques Chirac e Lionel Jospin, contra a opinião de Tony Blair, é de 48 horas. Mas os assalariados podem ficar tranquilos: ” o comité de empresa ou, alternativamente, os delegados de pessoal, se estes existem, são informados das autorizações para ultrapassar este limite quando solicitadas à autoridade administrativa”. Como justificar que, em tempos de desemprego em massa, se incentive as empresas a aumentar as horas de trabalho ao invés de aumentar o número de empregados?

A duração legal de 35 horas é mantida certamente como dispositivo de ordem pública, mas a majoração de remuneração das horas suplementares de 25% que se impunha se um acordo por ramo não tenha sido assinado poderá agora baixar para 10%, na sequência de acordo de empresa. A remuneração de 50% para lá das 8 horas, poderá ser suprimida. A definição da semana pode ser definida ao nível da empresa. O cálculo de horas suplementares pode ser feito ao longo de um período de 3 anos. As relações  de força dentro da empresa, portanto, determinarão a remuneração das horas suplementares e há razões para apostar que num contexto de desemprego em massa os 10% tornar-se-ão a regra e não a excepção.

Contornar os sindicatos por referendos de empresa

Para facilitar a conclusão de acordos de empresa, o projecto de lei introduz a possibilidade de se proceder à referendos de empresa. Até agora, um acordo minoritário (assinado por sindicatos que representam mais 30 % dos votos) não se podia aplicar se os sindicatos que reúnem pelo menos 50 % dos votos  se opuserem. Doravante, os sindicatos minoritários, se alcançarem os 30 % dos votos, poderão fazê-lo adoptar através de um referendo. Viu-se como funciona esta bela democracia no caso Smart. Aí,  a proposta posta à votação (os sindicatos que representam mais 50 % dos assalariados têm-se oposto à proposta de acordo), consistia em aceitarem baixas dos salários e um alongamento da duração do trabalho, sob a ameaça de que, no caso de recusa, a fábrica seria encerrada e os empregos suprimidos. Um ataque insidioso mas potente foi assim efectuado contra o diálogo social. Com efeito os empregadores sabendo que podem doravante chegar aos seus fins através de sindicatos minoritários (e “compreensivos”) vão perder qualquer estímulo a fazerem as concessões necessárias para obter o acordo dos sindicatos que representam a maioria dos assalariados. Assim, o patronato poderá, pela via da chantagem sobre o emprego, das pressões e ameaças diversas, jogar  com as disparidades de situação entre as categorias de assalariados, reduzir os salários, aumentar a duração do trabalho, deslocar progressivamente todas as vantagens sociais. Certamente, o objectivo deve ser o de alcançar um diálogo social frutuoso e seguro nas empresas, mas estas práticas não o favorecerão, antes pelo contrário.

Em cada empresa, o patronato poderá tentar fazer passar o seu direito, com as suas regras em matéria de tempos de trabalho, de despedimentos, de representação dos assalariados, pondo em causa os salários, etc. As empresas serão encorajadas a concorrerem entre si, no interior de cada ramo, pela via dos preços mais baixos (degradando a situação dos trabalhadores). Simplificação, não, porque, em caso de conflito, os tribunais devem julgá-los de acordo com acordos específicos a cada empresa, de que terão de avaliar a legalidade.

A lei pretende facilitar a conclusão de acordos para a manutenção e o desenvolvimento do emprego. Enquanto que até agora, a recusa de um assalariado de aceitar uma redução unilateral do seu salário ou uma modificação substancial do seu contrato de trabalho conduzia a um despedimento por motivos económicos (dando direito a significativa indemnização), a existência de um acordo de empresa agora permitirá dispensar os que rejeitam os novos termos do acordo, não em termos de despedimento económico mas por “razões pessoais”, um motivo de despedimento que não dá acesso senão aos direitos mínimos. Invocando-se as mutações tecnológicas ou uma ‘ reorganização da empresa necessária para salvaguardar a sua competitividade “, jogando com a chantagem sobre o emprego para assinar um acordo de empresa menos favorável, a empresa poderá pôr em causa os contratos de trabalho. Aqui novamente, a lei já não protege!

(continua)

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[1] – Veja-se a nota de ’A. Eydoux et A. Fretel: Réformes du marché du travail, des réformes contre l’emploiLes Économistes atterrés, Janeiro de 2016.

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Ver o original em:

http://www.atterres.org/article/la-loi-el-khomri-ou-comment-en-finir-avec-le-code-du-travail

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