CARTA DO RIO – 102 por Rachel Gutiérrez

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Há quase dois anos, em setembro de 2014, a jornalista Eliane Brum publicou na versão em português do jornal espanhol El país, um artigo que podemos considerar “antológico”, como se dizia antigamente. Título e subtítulo já convidavam a uma reflexão: “Os Silvas são diferentes / Lula e Marina, os dois fenômenos políticos mais fascinantes da história recente, são filhos de Brasis que se desconhecem”. E, um pouco à maneira de um teorema, o artigo desenvolve uma demonstração de que apesar de serem ambos sertanejos, Lula e Marina são diametralmente opostos no que diz respeito ao essencial: o desejo.  Homem, teu nome é desejo! disse Octavio Paz. O de Lula seria o de depois de “subir na vida pela via do ‘progresso’ e da industrialização, vencer na vida no mundo do Outro.” Em resumo, para ele, deixar de ser pobre é possuir coisas: “Casa melhorada (…) geladeira nova e cheia, TV de tela plana, um carro na garagem.” O que explicaria a inserção de milhões de brasileiros no mundo do consumo, principal meta do governo Lula que, como observou o Senador Cristovam Buarque, “perdeu o vigor transformador”.  O triste é que, como também disse o Senador: “perdeu depois a vergonha”. Após os escândalos do “mensalão” e do “petrolão”, e as denúncias sobre relações espúrias com empreiteiras e sobre propriedades não declaradas etc., chegamos a nos perguntar: será que o vigor transformador alguma vez realmente existiu?

Marina Silva, que nasceu no Acre, filha de pai seringueiro, seringueira ela também, “se cria na floresta e é moldada por ela. Sua iniciação política se dá nos  ‘empates’, tática de resistência na qual homens, mulheres e crianças se dão as mãos para fazer uma corrente em torno da área ameaçada e impedir o seu desmatamento – e, com ele, sua expulsão daquele mundo.(…) É uma luta por permanência não por partida.”

Lula orgulhou-se de só ter recebido como diploma o de Presidente da República; Marina, analfabeta até os 16 anos, é hoje historiadora, professora, psicopedagoga, política e ambientalista reconhecida internacionalmente, tendo recebido vários prêmios, inclusive o Champions of the Earth, da ONU, por sua luta para proteger a Floresta Amazônica. Não se sabe se ela possui uma TV de tela plana, mas sabe-se que sua biblioteca ultrapassa os sete mil volumes. Não é rica: vive de dar aulas e fazer palestras em escolas e universidades.

Dizia, com acuidade, Eliane Brum: “Se para Lula a possibilidade de ascender está na inclusão no mundo do Outro, para Marina o Outro é aquele que se experiencia para alcançar a si mesmo.” E o que é mais interessante: “Se a ascensão de Lula ao poder já produziu no Brasil, só pelo fato em si, uma enorme mudança simbólica, a de Marina ainda é potência e incógnita (…) aqui não colocada como um defeito, mas como possibilidade.”

O artigo de Eliane Brum fora escrito em plena campanha de 2014, quando Marina Silva teve de assumir a candidatura, pelo PSB, à presidência, após a morte trágica de Eduardo Campos, com quem compunha uma chapa que pretendia apresentar a terceira via para a política no Brasil.

O desfecho daquela campanha foi a reeleição de Dilma Rousseff que fez “o diabo” para se reeleger e de fato se reelegeu e que  ora se encontra, como sabemos, nos últimos dias de seu governo contestado pelo processo de impeachment em andamento.

Foi quando Dilma era ministra da Casa Civil de Lula e Marina, ministra do Meio Ambiente que as diferenças entre a desenvolvimentista e a ambientalista se acentuaram. A ex seringueira “foi perdendo espaço dentro do governo do ex operário e, em seguida, (dentro) do Partido dos Trabalhadores.” (…) “A partir do segundo mandato de Lula, algumas das lideranças históricas dos movimentos sociais da Amazônia, (…) começam a perceber que ser/estar no mundo dos povos da floresta (…) já não tem mais espaço. E a partir de Dilma Rousseff, nem mesmo interlocução. Para eles, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se a prova definitiva de que o projeto para a Amazônia de Lula e Dilma guardava semelhanças com o da ditadura militar: a floresta seguia sendo um corpo para exploração, e os povos da floresta um entrave a um tipo de desenvolvimento que nega sua existência e seu modo de vida.”

 Pouco adiante em seu longo artigo, Eliane Brum foi contundente: talvez mais grave do que não compreender outras maneiras de ser brasileiro é achar que não é preciso compreender. (…) Assim como continuar ignorando, apesar dos sinais inequívocos que já marcam a vida cotidiana, que a mudança climática e as questões sócio ambientais nela implicadas são senão o maior, um enorme desafio para qualquer governante…do nosso tempo.

Outros assuntos são também abordados pela brilhante jornalista, mas o que eu quero salientar agora é que a Marina Silva de hoje talvez seja ainda mais incompreendida porque em relação ao impeachment da presidente Dilma, por exemplo, ela inicialmente se declarou contrária por acreditar que o pedido de cassação da chapa Roussseff/Temer, apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral pelo PSDB, propiciaria logo novas eleições e consequentes mudanças mais efetivas do que a simples substituição de Dilma por seu Vice Michel.

Para que ela – Marina – pudesse se eleger? perguntam logo os que não conseguem entender que a visão de mundo e da política da amazonense não é eleitoreira nem busca o poder pelo poder. Marina Silva fundou, com companheiros e seguidores, o partido que se chama Rede Sustentabilidade e que apresenta um estatuto que vale a pena conhecer:

Ingênuo? Talvez. Inaugura, sem dúvida, um jeito novo de pensar e de fazer política. Sua linguagem felizmente se afasta do que o Senador Cristovam Buarque chamou de petez e peessedebez da cansada polarização que tanto dificulta o diálogo entre os brasileiros.

E se Marina Silva sugeriu, em sua campanha e na crise recente, “um governo de notáveis”, foi por desejar acima de tudo a unificação do país, para além dos partidos e dos conluios, o que talvez seja exigir demais de Michel Temer e da atual conjuntura.

Ainda não chegou a hora do impeachment do sistema. Contudo, como afirmava Eduardo Campos, é bom acreditar que

Não vamos desistir do Brasil!

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