Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
Cenas turcas – quando a Europa se deixa enganar como uma parola
Jean-Paul Brighelli, Turqueries – Quand l’Europe se fait rouler dans la farine par Erdogan
Revista Causeur, 21 de Março de 2016
A Europa não tem que pagar à Turquia para que ela retenha alguns migrantes.

Pacha, isto não é de forma alguma aquilo em que acredita.
Podia ter continuado a ser um pacífico Haroun El Poussah, califa de Bagdad incessantemente ameaçado pelos perigos criados pelo miserável vizir Iznogoud. Um pacha bonacheirão, enfiado no seu sofá oriental, mais virado para a sesta do que para o trabalho .
Mas isto era nos anos 1960, sob a mão conjunta de Tabary e de Goscinny. Dos turcos na época não se sabia muito, a não ser o que se contava pela tradição escolar — “cenas turcas” são um género muito em voga entre 1660 e 1750, que podem ir de situações do tipo de Bourgeois gentilhomme aos retratos da Pompadour depois da Du Barry em sultanas pelo pincel de Van Loo, passando por Montesquieu (Cartas Persas) e de Crébillon (Le Sopha).
É verdade, tinha já havido, muito antes (por volta de 1480), o extraordinário retrato de Mehmet II de Bellini. O pintor veneziano tinha agarrado, num perfil acutilante, o que o sultão Supremo tinha de crueldade implacável e de autocratismo de modo algum esclarecido.
Este corajoso rapaz que na verdade massacra o seu próprio povo, negacionista desavergonhado, comprador do petróleo vendido pelo Estado islâmico, que tem a imprensa silenciada e é muito amigo das mulheres[1] compreendeu que o XXI século reformaria os impérios: Deng Xiaoping tinha sido um dos primeiros, Putin não lhe ficou atrás e Erdogan sonha em reconstituir o antigo domínio otomano, do Bósforo a Argel, passando por Aqaba e Damasco. Os Americanos, que se crêem como sendo os senhores do mundo, permanecem perplexos em face desta ressurreição de entidades políticas que existiam quando os Estados Unidos eram povoados apenas de índios e bisontes. Quanto aos Europeus, estes nunca foram um império — e acredito profundamente que este é o vício de nascença da Europa, que recusou ser política, para não contrariar os sonhos prussianos de grandeza que renasciam e dos Franceses que minguavam — os Italianos pagaram para ver, sob Mussolini, o que custava ter sonhos imperiais e os espanhóis estão fora de jogo desde os Tratados de Westfália (1648) e dos Pirenéus (1659) — isto já passou à história.
À partida, quando a Europa negocia com um verdadeiro sultão, não entende nada e deixa-se levar que nem uma parola. A Europa cede à chantagem de Erdogan oferecendo-lhe seis mil milhões (“um acto de solidariedade”, disse François Hollande – este não perde uma ocasião de meter o pé na poça) para que este possa gerir à sua maneira a questão dos refugiados sírios, ao mesmo tempo que lhe garante um próximo sucesso nas negociações de entrada da Turquia na Europa: se isso se fizer, o sonho longínquo dos pachas, que se tinha desfeito na batalha de Lepanto em 1571 e em Viena várias vezes (1529 e 1683, designadamente) tomará na verdade corpo e 75 milhões de Turcos acederão livremente à UE — uma das exigências de Erdogan é a supressão dos vistos para os seus concidadãos daqui até ao mês de Junho. Face a uma tal invasão, “a grande substituição” tão cara a Zemmour parecer-nos-á em comparação com isto apenas os testículos de um eunuco, perdão, o que escreve Zemmour ao pé disto parecerá caganitas de passarinha, ou seja, parecerá uma coisa pura e simplesmente insignificante. Com um pouco de sorte, isso irá coincidir com a morte de Bouteflika, o que conduzirá na Argélia a uma instabilidade comparável à que se deu com a morte de Tito na ex-Jugoslávia, e uns dois milhões de Argelinos virão saborear a hospitalidade marselhesa.
Marselha é pois uma cidade onde os Curdos (enfim, os que restam ) protestam diariamente (como se vê acima, junto à estação Santo-Charles) contra o terror instaurado pelo nosso amável pacha no seu próprio país. E isto sem estar a contar que sobre esta matéria Erdogan não deixa de dar lições de respeito à Europa o que augura bem sobre a sua futura presença em Bruxelas. Felizmente que alguns atentados vêm miraculosamente, cada vez que acontecem, dar-lhe motivos de indignação. Quando penso que os rumores de conspiração sobre o 11 de Setembro continuam a fazer circular histórias e especulações e que não se encontra ninguém no Ocidente para sugerir que os atentados de Istambul confortam maravilhosamente a intransigência do califa dos califas… Sei muito bem que os Curdos não são crianças de coro, que o PKK é classificado “organização terrorista”, etc. mas estão na primeira linha contra o Estado islâmico, e contra o seu aliado turco, e isto no momento que atravessamos deve ser considerado mais importante que tudo o resto.
A Europa não tem nada a ver nem a fazer com a Turquia de Erdogan — a não ser proteger as populações que Erdogan bombardeia diariamente e com obstinação. A Europa não tem que abraçar um islamita assumido — ou antes, deveria enviar-lhe umas emissárias femininas, para ver se o nosso pacha fundamentalista lhes aperta as mãos. A Europa não tem que estar a pagar a Erdogan para que este conserve alguns migrantes — continuando ao mesmo tempo a forçar a Grécia a aceitar sempre mais e mais sobre o seu solo. A Europa deve ajudar os que se batem contra o negro fascismo dos que se sonham califas e se sentam sobre a democracia.
E nós, nós não devemos apoiar a Europa de Donald Tusk e de Jean-Claude Juncker — ou de Angela Merkel e de François Hollande. Fazer “os Estados Unidos da Europa” de acordo com o velho sonho de Vitor Hugo, não é estar a baixar as calças em face do novo imperialismo otomano — isto nunca é uma boa ideia fazê-lo diante de famigerados empaladores.
Jean-Paul Brighelli, Revista Causeur, Turqueries -Quand l’Europe se fait rouler dans la farine par Erdogan. Texto disponível em: http://www.causeur.fr/turqueries-37348.html
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