A NOSSA RÁDIO – Cesário Verde dito por Mário Viegas (2) – por Álvaro José Ferreira

a nossa rádio

(1855 - 1886)
(1855 – 1886)

 CARTA A SILVA PINTO (1875)

Meu muito querido e excelente irmão:

Como hoje é domingo, só tarde recebi a tua bondosa carta e não posso dizer-te, como desejo, a expansão que ela me produziu.
És uma alma extraordinária; eu sou indigno de ti; acredita-o. Valho tanto como os demais.
Não te iludas comigo.
Os conselhos dedicados que me dás, e que eu recebo com o maior reconhecimento, são a verdade. E é isso que eu já pensava, mas julgo que não me fiz compreender bem.
A poesia que eu hoje te mando é a minha última maneira. Vês por ela que eu não desprezo de modo algum o coração, que quando desprezado não deixa brotar nenhuma obra de arte.
Mas o que eu desejo é aliar ao lirismo a ideia de justiça.
Eu não sei a quem te referes quando falas dos pérfidos.
Eu aqui não me dou senão com dois ou três rapazes do comércio, bem amigos.
O que eu hoje recebi de ti justificou-me, sem necessidade e mais uma vez, a grande lealdade da tua alma diferente de todas que tenho observado. És um tigre amoroso.
Perdoa-me; eu nem sei o que digo.
Mas aqui ninguém me quer mal, também é verdade. O Junqueiro, de quem tanta gente diz mal, é um dos homens que me trata com mais especial deferência; até quando fala de mim aos rapazes. Ele tem fama de desfrutador: e apesar disso julgo-o sincero comigo, chegando a dispensar-me cavacos duma grande intimidade que ele confessa raríssima para os outros. Os versos que te mando sugeriram-lhe umas frases que, se eu não fosse desconfiado, encher-me-iam duma fatuidade intolerável.
A mais ninguém escuto e sigo com plena confiança como a ti: afianço-te.
Os outros entretêm-me no cavaco, têm bons ditos, conversam bem e fazem-me sorrir. Que, com verdade, não tenho razão de queixa de nenhum, e, às vezes, cismo na razão por que todo o mundo me trata bem. Ninguém me deve obséquios, ninguém me quer enganar e muitos me procuram e me penhoram de pequenas delicadezas que eu não sei pagar, muitas vezes, com igualdade.
Isto superficialmente; que amigos íntimos, íntimos, só tenho um: és tu.
Mas, pelo amor de Deus, não te expandas assim comigo, que me fazes mal!
Sinto remorsos e uma grande impossibilidade de retribuir a um coração tão singular como o teu.
Eu sou frio, pausado, calculista como todas as organizações criadas neste meio comercial. E tu não. És ardente, imaginoso, excessivo, e isso leva a imensas decepções e a imensos desgostos.
Não te fies em mim, que sou igual a todo o mundo — sendo tu, na vida prática, a única amizade real e verdadeira que se me tem dedicado.
Beijo-te reconhecido.

Teu
Cesário Verde

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