A COR DOS HOMENS/2 – Romance de Fernando Correia da Silva

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RESENHA

 

A história se passa em Palmira, uma cidade ou condado imaginário dominado pela Casa Grande, sede de uma herdade outrora vasta e rica, onde o lago é agora um pântano que talvez ainda abrigue enormes dinossauros. “Tudo se degrada: os dinossauros em crocodilos, os brancos em espantalhos iguais aos pretos”. Porque não há mais brancos nem pretos: uma estranha peste deixou a todos de uma mesma cor lilás que iguala e dilui os traços, tornando-os quase irreconhecíveis. Eurico Vossler, o narrador, é um ex-branco, grande senhor fragilizado e esmagado por um pai severo e assustador, cuja mente vive imersa numa nebulosa que ora turva seus pensamentos, ora o torna clarividente e premonitório.

A zona oriental de Palmira é um bairro de lata, uma grande “senzala” onde os ex-pretos vivem, cantam e dançam ao som de atabaques. “Hoje no bairro de lata (…) livres são ainda o canto e o batuque (…) as derradeiras liberdades do povo negro.” Na Casa Grande, ressoam as cantigas da ex-preta Sara que, com esse nome assim judaico, é a mãe preta, a mãe de todos, que criou e amou os filhos de Eurico e os de sua altiva e inabalável irmã Frigia, que já tivera seus momentos de fogo e fulgor nos braços do marido, Biarni, o falecido ex-branco, dominador e cruel cujo segredo só a ex-preta Sara conhecia.

Eurico espera o retorno de seus dois filhos que, em sua delirante bruma, confunde com os filhos de Frigia e seu refrão patético é “pudesse eu descascar a nova cor”. Sua relação mais terna é com um cavalo branco e sua nostalgia de outros tempos é grande e triste. É um homem só que olha os longes: “Encostado a um rochedo, ficava-me eu a contemplar o longe. Mais tarde começava a amanhecer, a oriente o céu em cinza e sangue, alvorada.” O monólogo nebuloso de Eurico dá lugar por vezes às lembranças de antigas discussões, diálogos exaltados inter pares, os  ex-brancos, que desejam preservar a pureza – e o poder! – da raça branca. E há o temor dos pretos, porque alguns nasceram para senhores, “os rebeldes, os que mandais matar; preto e branco são duas realidades que o lilás apodreceu.” E a realidade que vem à tona, a crua, a evidente e inexorável realidade, aquela que as fascinantes teorias não conseguem disfarçar é a realidade da dialética dos senhores e dos escravos. “Outrora (…) justificava-se o racismo de classe sob a capa do racismo de cor.”

E a fábula toma cores de tragédia quando a Nova Ordem Lilás perpetua a intolerância e passa a perseguir e a linchar os ex-pretos. Apesar do amor.  Apesar do amor de Sara e apesar do amor de um jovem casal apaixonado. “Apenas de nós depende salvarmo-nos contra o mundo, e contra o mundo salvarmos o mundo ou talvez perdê-lo”, diz o jovem amante condenado por seu crime de amar. 

Para essa Peste não houve nem haverá redenção, a menos que a própria fábula nos incite a combater as injustiças dos homens.

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