Dorindo Carvalho: «O Sentido Trágico dos Limites» – 5. A imposição do corpo. O corpo como categoria filosófica. Por José Fernando Tavares.

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  1. A imposição do corpo. O corpo como categoria filosófica

O que acima ficou expresso pelo nosso juízo, para além da ideia, também ela um lugar-comum, de que não existem limites para a arte, é a ideia de que as formas estéticas são concebidas de acordo com um conjunto indeterminado de coordenadas metafísicas que nem sempre o próprio agente criador está apto a compreender. Dir-se-ia que há uma mão divina que o orienta para a concepção de uma forma previamente determinada; como se os traços e as formas essenciais de uma escultura, por exemplo, já há muito habitassem dentro da pedra, e o agente criador se limitasse apenas a revelar essas formas perante a sensibilidade dos homens.

O que importa acentuar na obra de Dorindo é, afinal, esta marcada dimensão humanista sem a qual não poderíamos reconhecê-la. Essa característica, dissemo-lo já, é típica de uma boa parcela da sua geração: geração de encruzilhada, na qual o homem, enquanto entidade social e espiritual, se afirma como o principal agente motivador. À semelhança desse humanismo emergente do realismo oitocentista, no qual o homem é visto como uma parcela do complexo jogo social, também o homem da arte de novecentos se não dissocia da sua realidade social. Desta vez, porém, também se tem em linha de conta a entidade individual; o homem como ser situado em si mesmo, para além da realidade tridimensional.

Esta dimensão simultaneamente social e individual pode ser vista, como também já aqui fizemos notar, na actividade relacionada com o desenho gráfico. O seu vasto e variado percurso como capista e ilustrador, não apenas de livros, em diversas editoras, como também de revistas que marcaram uma presença importante na história da comunicação social em Portugal, tais como a Vida Mundial ou a Vida Rural, testemunha uma consciência muito clara, não apenas do homem enquanto ser social, mas também do homem como suporte material de um corpo que lhe é indissociável, quer do ponto de vista antropológico, quer do ponto de vista filosófico.

Tal como acontecia nos desenhos inesquecíveis dos livros de bolso das Publicações Europa-América, encontramos nas capas destas revistas um traço vigoroso que confere aos homens e à realidade circundante uma visão poderosa e arrebatadora; a visão de uma realidade que, aparentemente, não deveria ser estranha para aquele que as contempla.

Há aqui rostos macerados pelo sofrimento; há braços vigorosos que empunham as enxadas para abrir sulcos na terra; há mulheres de lenço à cabeça que transportam legumes de braçado; há braços que se erguem para o céu de modo a manifestarem o regozijo pela união da sua classe trabalhadora; há o emigrante que regressa à terra que o viu nascer, acolhido de calorosos braços abertos; mas também há um corpo antropomórfico que é uma máquina com uma simbólica coroa dourada a representar o triunfo da robótica em detrimento do braço do trabalhador.

Há, por fim, o braço (e sempre o braço humano a impor a sua força) de um soldado a empunhar a metralhadora com o cravo da Revolução (ilusoriamente) triunfante.

A trilogia intitulada Variações sobre o cravo (1976), executada a óleo sobre madeira, mais não é do que o prolongamento do seu imaginário gráfico: há punhos erguidos que irrompem da terra para combater a morte, também ela aqui presente para simbolizar a sórdida morbidez do regime deposto; três imagens onde o cravo intervém como personagem simbólica da mudança.

O trabalho gráfico de Dorindo também se estende à ilustração de livros infantis, trabalho que se estende à elaboração do genérico televisivo da série Os Putos, baseada na obra homónima de Altino do Tojal. Ao fundar, em 1978, a Eixo Editora, o artista revela as suas preocupações pedagógicas ao executar um conjunto de ilustrações cuja temática nunca deixa de apontar para um humanismo emergente.

Esse mesmo humanismo, que já havia sido revelado de uma forma intensa no seu trabalho gráfico, irá prolongar-se na Venezuela, um novo espaço geográfico que lhe permite reencontrar um tropicalismo semelhante àquele que havia conhecido em África. Mas desta vez há uma outra apreensão da cor, conforme podemos observar nas ilustrações das capas dos livros de Rómulo Gallegos: cores fortes e alegres, frescas e vivas, que contrastam vigorosamente com os traços a negro definidores do perfil das figuras humanas.

Ao longo da obra de Dorindo, a representação do corpo assume várias metamorfoses.

O interesse pelo humano situa-se, como vimos, entre o factor psicológico (representado na temática do homem enquanto realidade onírica), e o factor material do homem enquanto ser situado num corpo e numa cultura específicos. Na série de quadros a que dá o título de Retratos do Silêncio (série datada de 1984) deparamo-nos com a representação transfigurada do corpo.

Nesta série, a figura humana assume uma forma circular. A sua configuração assemelha-se a uma nuvem recortada no espaço. São corpos nus, despojados da sua complexidade natural, fechados sobre si e, talvez por isso, reveladores de um sentimento de angústia muito próximo da crença na sua dissolução. Retratar o silêncio não deixa de ser uma tarefa e uma atitude poéticas; ou melhor, da poesia enquanto expressão criadora, não necessariamente circunscrita a uma verbalização. É aqui que o trabalho pictórico pode andar de mãos dadas com a literatura, subvertendo e enriquecendo uma significação (ou um conjunto de significações) que se situa para além da palavra. De facto, estes corpos circulares, de formas grotescas, estão despojados de tudo, até mesmo da palavra. Possuem, porém, a sua significação e a sua intimidade; possuem um segredo que só a eles pertence. Podemos vislumbrar nestes homens circulares a ausência dos afectos, a sua fome de amor. Para lá desta ausência, estes corpos suportam com dificuldade do peso do tempo, ou seja, o peso de uma existência temporal que reclama para si um pouco da eternidade cósmica.

Na primeira exposição individual de Caracas, Dorindo mantém, não apenas a mesma técnica, mas também a mesma temática utilizada em Retratos do Silêncio. O uso da tinta da china sobre o papel branco confere aos corpos em movimento uma definição que lhes confere solidez e dramatismo, para além de confirmarem a mesma circularidade perturbante, como acontece nos desenhos Opus 230/82, Fuga-Opus 232/83 e Opus 223/82.

São corpos que parecem gritar, possuídos por trágico sofrimento. Mas é um grito silencioso, como se a palavra estivesse petrificada no espaço. Dir-se-ia que as mãos e os pés desmedidos procuram libertar-se de uma vida sufocante que lhes esmaga a vontade e os movimentos. Estes trabalhos são um hino, não apenas à liberdade humana, mas também à própria vontade de viver. Não deixa de ser significativo (e não menos perturbante) o quadro que intitula Opus 212/82: desta vez trata-se de uma pintura a óleo e a acrílico sobre tela (pois a tinta da china não faria aqui o mesmo efeito) que, pelo seu poder irradiante, serviu para figurar na capa do catálogo da referida exposição.

Trata-se, uma vez mais, e à semelhança dos Retratos do silêncio, de uma figura humana que segura, por entre as mãos fechadas, uma águia real.

Por sua vez, a figura enverga um chapéu feito em papel de jornal. O chapéu possui, aqui, o efeito de uma máscara que simultaneamente transfigura e define: transfigura o rosto, mas define uma personalidade, mesmo que essa personalidade apenas se deixe adivinhar por detrás da impassibilidade esfíngica do rosto. É um rosto sem olhos, inexpressivo, mas sem dúvida revelador: revelador, talvez, da profunda tirania humana, da ríspida obsessão de uma ideologia, da loucura emergente perante uma vontade destruidora; revelador da trágica fraqueza dos tiranos, essa fraqueza que anuncia a queda, mesmo que se não perca a ilusão do poder.

Na pintura de Dorindo, sobreleva o silêncio; esse silêncio reprimido que ascende à angústia, esclarecendo-nos sobre o verdadeiro rosto do homem só. É o que acontece em Retrato transfigurado (1985) e Fragmentos de uma ruptura aparente (1986): ambos os trabalhos prolongam a temática de Retratos do silêncio, desta vez com o apoio da cor. Os corpos mantêm a sua estrutura circular e grotesca, mas desta vez a angústia reveste-se de tons ocres e esverdeados. Continuamos aqui a ver o homem na plenitude da sua condição e do seu despojamento existencial.

Na exposição a que dá o nome de Mundos de Corpos Fragmentados (1989), Dorindo atinge o apogeu da sua arte. É a partir daqui que o pintor põe em prática tudo aquilo que foi assimilando ao longo de um percurso cada vez mais amadurecido, mercê de uma constante aprendizagem da natureza na sua relação com o homem.

Nesta exposição, o artista continua a colocar diante do observador as mesmas questões essenciais em torno do humano e da sua contingência. Estes corpos fragmentados possuem a força da sua própria interioridade, essa mesma força que Dorindo já havia imprimido às suas primeiras re-presentações do homem em conflito com a sua humanidade (pois a existência humana pauta-se de acordo com um constante conflito consigo mesma).

Já no decénio de 90, Dorindo continua a afirmar a importância do corpo, não apenas enquanto expressão estética, mas também enquanto postura existencial e filosófica. Na exposição a que intitula Sinfonia de Corpos em Amor Maior (1996), surge-nos, uma vez mais, a temática do corpo, desta vez associado ao espectáculo do amor. Para além do transe amoroso, destaca-se nesta série o quadro intitulado Sonata, no qual observamos apenas uma figura feminina agachada. É um corpo nu, sobre um fundo preto e vermelho, absorvido na sua própria suspensão interior. A força deste trabalho reside nessa solitária (e sofredora, ao que julgamos) suspensão. Trata-se de uma suspensão de teor metafísico e espiritual: este corpo solitário enuncia o seu próprio limite físico, mas deixa, ao mesmo tempo, adivinhar a grandeza cósmica de que se faz valer o homem no seio do universo.

 

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