ASSOCIAÇÃO DE COMBATE À PRECARIEDADE – PRECÁRIOS INFLEXÍVEIS – O DIREITO SOCIAL, PERANTE O DESAFIO DA UBERIZAÇÃO (2.ª PARTE)

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O direito social, perante o desafio da uberização (2ªParte) | Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis

 (conclusão)

Publicamos aqui a segunda parte deste texto. Podes ver a primeira parte aqui.

2. Os direitos sociais reconhecidos aos trabalhadores independentes ou a fixação generalizada

Constatando a dependência económica na que se encontram alguns trabalhadores formalmente independentes, uma primeira tentação, para os retirar da situação de precariedade, seria reconhecer-lhes direitos sociais similares aos dos assalariados. Melhor ainda, um tal reconhecimento ao conjunto dos trabalhadores, qualquer que fosse seu estatuto, contribuiria para uma melhoria global das condições de vida.

Evidentemente, as garantias que se ofereceriam aos trabalhadores independentes consistiriam principalmente nas garantias sociais colectivas (desemprego, pensões, previsão e doença, etc.). Quanto ao direito ao contrato de trabalho não teria cabimento, na medida em que o trabalhador independente é aquele cujas condições de trabalho são definidas exclusivamente pelo mesmo ou pelo contrato que as define com o que dita as ordens.

Esta via conhece já algumas expressões. Pensemos no regime social dos trabalhadores independentes. Segundo quem defende estas ideias, todos, trabalhadores independentes, servidores públicos, agentes contratuais, assalariados, profissões liberais, devem ter direito a uma protecção social e o direito de aceder à carreira contributiva ao longo da vida. Expressa-se com isso a ideia segundo a qual os direitos sociais deveriam estar unidos à pessoa, ao indivíduo, e não ao estatuto. De forma mais fundamental ainda, é pensar que o trabalho deve permitir às pessoas o acesso a uma vida digna, e a condição em que a actividade é exercida tem influência nas condições de saúde, de segurança e de dignidade. Daí a afirmação de direitos sociais reconhecidos para além do emprego, em virtude dos princípios de universalidade, de igualdade e de dignidade da pessoa humana.

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A intenção é louvável. No entanto, a difusão dos direitos sociais aos trabalhadores independentes não parece desejável, pelo menos por duas razões. Por um lado, não distingue, entre os trabalhadores independentes, aqueles que se encontram numa situação de dependência económica e os outros. Portanto apaga-se a função lembrada aos direitos sociais de limitar e enquadrar o poder económico daquele que ordena. Por outra parte, a difusão dos direitos sociais, para além da esfera do trabalho subordinado, inclui o risco da individualização e o risco de que se separe das solidariedades colectivas que lhe deram origem.

Por outras palavras, a difusão dos direitos sociais para a esfera do trabalho independente pode ter um efeito contrário ao desejado. Não apenas pode desnaturalizar a função do direito social, mas também pode alimentar, sob a ideia da universalidade, um discurso devastador segundo o qual o direito social já não teria especificidade, e, portanto, já não teria utilidade. Progressivamente sobrepor-se-ia a ideia de que cada pessoa se convertia em titular de direitos, qualificados de contas”, relativamente aos quais se converteria em contável e responsável. E isso em nome da pretendida autonomia dos trabalhadores. Uma vez mais, esta perspectiva abre a via para fixar generalizadamente os indivíduos “activos”, bem longe da ideia de emancipação. Seguramente essa não é a esperança que animava Gérard Lyon-Caem quando propunha a elaboração de um “direito do trabalho não assalariado”.

3. Para um direito comum do trabalho subordinado e parasubordinado

Merece explorar-se uma terceira aproximação, que reside na constituição de um direito comum aos trabalhadores subordinados e parasubordinados. Essa ideia está próxima d as propostas formuladas por Alain Supiot ou Gérard Lyon-Caem sugerindo a constituição de um direito comum completado por direitos específicos, que seriam definidos como círculos concêntricos, em função do grau de submissão à pessoa que dá ordens. Assim chegar-se-ia a “a eclosão de um Direito da actividade, ao mesmo tempo comum e diverso, (….) suprimindo progressivamente as diferenças entre trabalho assalariado e trabalho não assalariado”.

O objectivo seria atrair para o espaço da classe assalariada o conjunto difuso dos trabalhadores juridicamente independentes mas em situação de dependência económica. Fica por saber como caracterizar juridicamente a dependência económica do trabalhador juridicamente independente. Pode tomar-se em conta a origem do valor de negócios, a exclusividade e a duração da relação, a dependência da organização produtiva do trabalhador relativamente à do que dá ordens? Poderiam tomar-se em conta eventualmente vários critérios, mas parece essencial o grau de integração económica.

Em qualquer caso, a invocação de um direito da actividade profissional não é a mais adequada. É preferível a do direito do trabalho subordinado e parasubordinado, que põe o enfoque mais sobre o poder a que estão submetidos os trabalhadores. É importante tornar visível essa pretensão já evocada do direito do trabalho de identificação e de enquadramento dos poderes económicos privados. O que dá ordens, como a plataforma digital, exerce um poder que deve justificar. As suas decisões de gestão afectam efectivamente os interesses dos trabalhadores que empregam ou que chamam. A título de exemplo, não teria sido legítimo que a decisão de fechar Uber-pop, em junho de 2015, tivesse sido dada a conhecer aos milhares de condutores de outra forma que não fosse através de um simples SMS? É aceitável proceder dessa forma quando a decisão tem feito perder, a milhares de pessoas, o meio essencial pelo qual exerciam sua actividade e conseguiam assim satisfazer suas necessidades? O detentor do poder não pode pois ser “o único juiz”. Deve permitir ao conjunto dos trabalhadores que estão economicamente integrados na empresa “participar colectivamente na determinação de suas condições de trabalho e na gestão desta última”.

A elaboração de um direito comum parece muito oportuna quando se está dedicado ao ideal de emancipação tanto como ao de universalidade. Tal direito permitiria limitar a exteriorização do emprego e a explosão das formas de subemprego, para as quais contribui o desenvolvimento das plataformas. Isto vale também para as redes de subcontratação, em que, de uma ponta à outra da corrente, se encontram empresas multinacionais e trabalhadores independentes. É já o momento de dar um estatuto a estes últimos enquanto “trabalhadores independentes economicamente integrados”. Eles estão na esfera de influência daquele que dá ordens e exerce sobre eles um poder e que é dono do vínculo de fidelidade.

[3] Seria importante estabelecer, a cargo das plataformas, “uma responsabilidade social”. Mais concretamente, estas deveriam:
– Responsabilizar-se do pagamento de contribuição para a segurança social, nomeadamente em matéria de riscos profissionais;
– Assegurar ao trabalhador um direito de acesso à formação profissional contínua, encarregar-se do pagamento de formação profissional, bem como das despesas associadas à validação das valências obtidas, garantir que o trabalhador beneficia de uma parte mínima do valor de negócios da plataforma;
– Não poder comprometer a responsabilidade contratual, romper a relação contratual ou tomar medidas que penalizam o exercício da actividade, quando se verifica que os trabalhadores defendem as suas reivindicações profissionais;
– Respeitar o direito à constituição de uma organização sindical, a filiar-se a ela para fazer valer através da mesma os interesses colectivos.

Estes avanços são muito modestos e constituem no essencial uma ilusão, tanto pelo seu número como pela sua importância. Nem sequer se contempla, à semelhança dos gerentes não assalariados das sucursais, a aplicação das regras relativas ao tempo de trabalho, à saúde-segurança ou em matéria de férias. A seguir, o respeito dos direitos e obrigações, que formam o coração da “responsabilidade social” das plataformas, não implica “estabelecer a existência de uma relação de subordinação entre a plataforma e o trabalhador que recorre aos seus serviços”. Isto poderia constituir um retrocesso. Aqui está um belo truque, pretender contribuir para uma resposta à precariedade dos trabalhadores dependentes economicamente enquanto se trata, na verdade, de oferecer ao capitalismo de plataforma, além do suplemento de imagem de ser “socialmente responsável”, uma imunidade contra as acções de requalificação. Por último, esta proposta carece terrivelmente de ambição e contribui para a fragmentação dos estatutos ao prever um novo regime especial próprio das plataformas, como se esta nova engenharia técnica e jurídica justificasse por si mesma um regime especial.

Destas três vias, conviria saber articular a primeira e a última. Mas o direito social permanecerá sem dúvida impotente perante a pretensão de fazer dos consumidores os futuros activos dos quais se alimentará o capitalismo. Tanto pela Google como pela Leclerc, esta questão tem sido bem entendida…

***

[3] eliminação de parte do texto que se refere ao contexto francês e à legislação laboral, que conclui sobre a questão das plataformas, criticando as propostas que estão a ser feitas aí.

*Josépha Dirringer é professora de Direito Privado na Universidade de Rennes I
Editado em: Contretemps, Nº 30, julho 2016
Traduzido por Ana Feijão, a partir da tradução, em castelhano, da publicação VientoSur, adaptado e cortado para efeito de documento de análise da Associação

 

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Ver o original em:

O direito social, perante o desafio da uberização (2ªParte)

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Ler a 1.ª Parte deste texto de Josépha Dirringer, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, em:

ASSOCIAÇÃO DE COMBATE À PRECARIEDADE – PRECÁRIOS INFLEXÍVEIS – O DIREITO SOCIAL, PERANTE O DESAFIO DA UBERIZAÇÃO (1ªPARTE)

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