Selecção de Júlio Marques Mota
Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016
O desastre Italiano

Perry Anderson, The Italian Disaster, London Review of Books
(continuação)
Um presidente italiano é eleito numa sessão conjunta das duas Câmaras do Parlamento, além dos representantes das regiões, por escrutínio secreto. Uma maioria de dois terços é necessária para a eleição nas três primeiras rondas eleitorais, posteriormente apenas uma maioria simples. Porque os votos são secretos, a disciplina partidária é fraca, e muitas rondas eleitorais podem ser necessárias para eleger com sucesso um candidato. Em 2006, Napolitano passou ao quarto escrutínio. Em 2013, os eleitores votaram 1007 vezes, exigindo-se 672 votos no primeiro conjunto de rondas eleitorais e 504 posteriormente. O centro-esquerda tinha 493 destes eleitores, uma clara posição inicial de força sem precedentes. Mas desde que o Presidente é suposto ser super partes, a convenção mantém que um candidato deve ter um grau de consenso interpartidário. O PD procurou, portanto, o acordo de centro-direita para uma figura que ambos poderiam apoiar. Franco Marini, um veterano democrata-cristão e ex-presidente do Senado, foi o escolhido. Marini foi rapidamente classificado como sendo um fóssil por Renzi, cuja facção do PD desertou, e obteve apenas 521 votos, muito aquém dos dois-terços, mas os votos suficientes para uma maioria simples.
Enervado por este contratempo, ao invés de se manter firme no seu apoio para a quarta ronda, o PD abandonou Marini e na confusão criada votou em branco nas rondas seguintes, em que o jurista Stefano Rodotà, proposto pelo M5S, ficou à frente com 230-250 votos. Grillo abandonou a sua posição de não ter nada a ver com o PD e apelou para se unirem forças com o M5S e eleger Rodotà na próxima ronda eleitoral, insinuando que se isto fosse feito a cooperação entre os dois partidos, tendo em vista o acordo para formar um governo, seria possível. Rodotà não era uma escolha sectária; amplamente respeitado, ele tinha sido mesmo proposto pelo PD para presidente nas eleições anteriores. Mas sendo um grande defensor da legalidade constitucional, Rodotà não era aceitável para o partido a que tinha pertencido, que temia que ele pudesse impedir as alterações institucionais que o PD tinha em mente, para não falar já da hipótese de recusar qualquer entendimento com Berlusconi, para quem era um anátema.
Reunindo as suas tropas, Bersani propôs, em vez disso, Romano Prodi, cujo nome recebeu uma ovação no seu partido. Agora, era necessário apenas uma maioria simples. O centro-direita deserta na votação. Ainda quando os votos foram contados, Prodi tinha recebido apenas 395 – cem votos a menos relativamente ao total dos eleitores do centro-esquerda. Desta vez não terá sido tanto a facção de Renzi mas terão sido, isso sim, os seguidores do seu arqui-opositor, D’Alema, que sabotaram a eleição de Prodi, uma vez que havia um grande rancor contra este desde o tempo da sua rivalidade na década de 1990. O PD ficou exposto e considerado como sendo um partido de gente desunida e desmoralizada, aparentemente incapaz de um mínimo de lealdade política e de unidade. Em lágrimas, Bersani demitiu-se de líder e, no meio de um barulho ensurdecedor de uivos na imprensa sobre os perigos da ingovernabilidade que o país enfrentava, o partido apressou-se a juntar-se a Berlusconi para mendigar a Napolitano que salvasse a Itália com um segundo mandato. Com muitas afirmações suas de que isso era contra a sua vontade Napolitano graciosamente aceitou e no sexto escrutínio obteve a votação que suavemente o levaria de volta para o palácio presidencial, de onde tinha ostensivamente deixado o lugar vago. Com a idade de 87 anos, ultrapassado na idade apenas por Mugabe, Peres e pelo moribundo rei saudita.
Um governo teria ainda que ser formado, mas com Bersani – uma figura demasiado directa e de contacto agradável – fora do caminho, Napolitano poderia continuar no sentido de recriar o governissimo conforme os seus desejos, um governo de centro-esquerda interligado com o centro-direita. Desta vez poderia fazê-lo mais abertamente, convocando os líderes para acertarem agulhas com ele e ditar as suas escolhas. Como primeiro ministro escolheu o vice-líder do PD, Enrico Letta, um antigo democrata-cristão cujo tio Gianni Letta foi o mais urbano dos conselheiros de Berlusconi. Alfano, responsável pela legislação que conferiu imunidade a Berlusconi e Napolitano, tornou-se vice-primeiro. Um funcionário do Banco Central foi instalado no Tesouro como garantia de continuidade com as políticas do Monti e em conformidade com o Compacto Fiscal. Berlusconi, no entanto, que deveu muito da sua recuperação eleitoral como candidato à sua promessa de que iria revogar o imposto sobre a habitação criado por Monti, o correspondente ao nosso IMI, e bloquear qualquer novo aumento do IVA, fez do respeito a estas suas duas promessas a condição do parecer favorável à coligação. O resultado foi um governo zig-zagueante e ineficaz entre compromissos incompatíveis. No final do ano, a economia tinha-se contraído em mais de 1,9 por cento e a dívida pública aumentado para 133 por cento do PIB. O seu registo económico à parte, o governo de Letta rapidamente estava manchado por dois escândalos de um tipo bem familiar. Alfano, que também era ministro do interior, esteve envolvido no transporte da esposa e filha de um dissidente cazaque a fugir das garras de Nasarbajev, enquanto a ministra da justiça, Anna Maria Cancellieri, foi apanhada a afirmar que a filha encarcerada de um magnata da construção acusado de fortes ligações à máfia (em tempos passados, um apoiante do Il Moderno) mas que como uma amiga da família ela, a Ministra, faria o que pudesse pela rapariga e em tempo útil, até porque esta estava a cair numa situação de anorexia. Embora houvesse grande tumulto em ambos os casos, nenhum ministro caiu, Napolitano e Letta defenderam-nos. No Parlamento, o culto do presidente chegou a um ponto tão grotesco que os porta-vozes em ambas as Câmaras proibiam formalmente toda e qualquer menção a Napolitano a partir das intervenções dos deputados como uma afronta à dignidade da República. Naturalmente, l’innominabile terá ele próprio suplicado uma tal excessiva protecção.
O principal objectivo do governo era a reforma eleitoral para acabar com a Porcellum e alterar a Constituição para acabar com o Senado. Desde que de acordo com as regras existentes este último tema seria um processo demorado, foi introduzido um projecto de legislação para poder reduzir o tempo necessário para conseguir este objectivo. A atenção do público, no entanto, foi rapidamente desviada pelo drama dos infortúnios de Berlusconi. Em Junho, este foi considerado culpado de prostituir menores e condenado a sete anos de prisão. Nada ajudava a sua imagem, o veredicto afectava-o pouco em termos de curto prazo: sucessivos recursos foram capazes de atrasar a data do julgamento por vários anos. Mas em Agosto foi apresentada a sentença: quatro anos de prisão (três deles renunciada – (three of them waived)) por sonegação do pagamento de impostos pessoais – sobre € 7,3 milhões – e uma proibição de dois anos de ocupação de cargos públicos. A sentença de prisão, por sua vez, desencadeou a aplicação de uma lei aprovada nos meses finais do governo do Monti, que excluía os membros do governo de serem julgados até ao período de seis anos depois de saírem do governo, A aplicação da sentença significava a expulsão de Berlusconi no Senado.
Consciente de que com isso arriscava uma rebelião do centro-direita que iria derrubar o seu governo, Letta não tinha pressa para forçar a resolução da questão Berlusconi enquanto este, por seu lado, fez apelos cada vez mais frenéticos a Napolitano para o salvar , na esperança ou na crença, de que a sua compreensão passada, e por ele bem conhecida, se poderia estender à sua situação de agora. Napolitano estava disposto a isso se Berlusconi pedisse perdão, admitindo a sua culpa (mas ele estava a protestar pela sua inocência ) e somente naquele caso poderia receber o perdão presidencial tendo em conta a sua importância para a vida política do país. Mas não havia nenhuma chance de Napolitano poder ir mais longe. Ele não era sentimental: Berlusconi já não estava a ser reconhecido como antigamente. Furioso com esta frieza, Berlusconi exigiu que os ministros do seu partido se demitissem do governo, preparando-se para o deitar abaixo. Estes seus ministros inicialmente tinham aceite; mas, depois, pensaram nos seus postos de trabalho e no destino provável do centro-direita se, nestas circunstâncias, houvesse novas eleições. O resultado foi uma divisão aberta, Alfano levou bastantes parlamentares para fora do controlo de Berlusconi com o objectivo de formar um novo partido de centro-direita, para assim dar ao governo uma maioria estável que deixaria de estar sujeita aos caprichos de Berlusconi. Dez dias depois, Berlusconi foi expulso do Senado.
A vitória do Letta apareceu como sendo completa. A sua capacidade em termos de diplomacia, temperada numa tradição da democrática cristã, tinha exercido um papel chave em separar Alfano e os que o seguiram do domínio de Berlusconi. Fini tinha sido um outsider. Alfano foi um verdadeiro “insider”, o herdeiro potencial de Berlusconi : a sua deserção era a primeira verdadeira divisão no partido que Berlusconi tinha construído em torno de si mesmo. Mas o triunfo de Letta provou-se ser de muito curta duração. Em poucos dias, depois, Renzi tinha literalmente varrido as primárias para a liderança de PD que estava livre depois da saída de Bersani e limpou a velha guarda do partido, compondo a direcção responsável pelo aparelho do Partido com os seus adeptos e os fãs da sua própria geração. Ainda prefeito de Florença e nem estando mesmo no Parlamento, mas agora ao comando do seu maior contingente de deputados, ele tinha mais poder do que Letta e não demorou a demonstrá-lo.
Berlusconi pode ser um convicto criminoso, mas ele não era nenhum pária – em vez disso, era o interlocutor natural do novo líder, um político que se tinha retirado para a oposição, mas que não tinha sido posto fora da política e, mais ainda, estava à frente do segundo maior partido no país. O caminho a seguir seria o de fazer um acordo com ele. Em suma, Renzi estava a ter negociações confidenciais com Berlusconi, e os dois homens tinham chegado a acordo sobre as mudanças constitucionais e eleitorais a serem levadas a um Parlamento ao qual nem um nem outro pertenciam, num pacto que passaria por cortar na maioria de Letta . E então o primeiro-ministro? Em tweets como um adolescente a querer acalmar uma namorada prestes a ser abandonada, Renzi escreveu-lhe: “Enrico, está calmo, pois ninguém te quer tirar do teu cargo ”). Um mês depois, ele tinha derrubado Letta e instalou‑se como o mais jovem primeiro-ministro de Itália.
Tal como a sua vítima, Renzi vem de uma base da democracia-cristã, o seu pai era um vereador DC na sua cidade natal, fora de Florença – mas embora e por razões de idade ele cresceu através do movimento de escuteiros católicos, não como Letta, que veio da organização de juventude da DC. A família tinha um negócio de marketing onde trabalhou até à sua entrada na política a tempo inteiro ; entre as suas tarefas está o seu trabalho no jornal local La Nazione. Juntou-se a um dos resíduos da DC depois desta ter sido dissolvida, Renzi seguiu-o para o partido centrista Democrazia è Libertà – La Margherita (abreviatura DL) que oportunamente se fundiu com os remanescentes do comunismo italiano para formar a ala direita do PD e com 29 anos, foi eleito presidente da província de Florença: o tipo de posto que, mais tarde, iria denunciar como um desperdício de dinheiro e tentou abolir. Na época tirou partido disto, para rapidamente construir um aparato de assessores e de funcionários, projectando-se ele próprio com uma série de eventos dos media orquestrados por uma empresa criada e controlada por ele, como um órgão de propaganda da província, cujas dívidas aumentaram sob a sua responsabilidade e cujas contas poderiam e deveriam ter sido questionadas pelos auditores do Estado.
Cinco anos depois, Renzi conseguiu a nomeação do PD para prefeito de Florença, um dos bastiões da centro-esquerda na Itália. Com muito sucesso, a sua administração tornou o centro histórico em zona pedonal e poliu a sua imagem turística: os cidadãos poderiam, mais uma vez, ter orgulho na sua cidade. Pouco progresso, no entanto, terá havido em termos de poluição. Fora do centro, o trânsito ficou pior, os autocarros foram privatizados, contra a opinião da oposição unida. Depois de inicialmente ter garantido os aplausos em geral como sendo o melhor prefeito do país, a sua posição caiu depois, em parte porque muitas realizações das quais se gabava provaram-se como falsas. Mas desde o início que Renzi fundamentalmente olhava para fora de Florença. As actividades municipais eram concebidas não tanto como uma expressão das realizações locais mas, sobretudo, como um trampolim para subir a nível nacional. A prioridade eram então os shows de alta visibilidade, estrelados por celebridades de todo o país, em eventos multimédia, com uma série de grandes festas político-culturais na convertida estação ferroviária Leopolda, alardeando “Next Stop Italy”’, ‘Big Bang’ e assim por diante: música rock e vídeos em plena profusão enquanto vários empresários e variados actores, filósofos, músicos, escritores, diziam uns soundbites às multidões, com um final empolgante proferido pelo próprio prefeito. O prémio era sempre a sua imagem difundida.
(continua)