O MAPA (A saga do anadel)/63 . – San Miguel? – San Michele? -por Carlos Loures

Veneza, terça-feira, 1 de Outubro de 1487.

 

Quando se levantou, após ter dormido, profundamente, durante umas duas ou três horas, Lourenço estava já bem recuperado da noite e madrugada anteriores. As suas preocupações eram agora, com a morte de Navarro, bastante maiores. Depois de se ter lavado, barbeado e vestido, desceu para o dejejum na grande sala do piso térreo da estalagem. A um criadito que lhe trouxe o leite, o pão e um boião de doce, perguntou, como se de coisa sem importância se tratasse, se existiria alguma igreja ou algum mosteiro em Veneza com o nome de San Miguel ou, mais provavelmente, de San Michele. Talvez não fosse uma igreja ou um convento, mas sim uma rua ou uma praça, acrescentou. Podia até ser uma estalagem ou uma residência…

O rapaz, disse desconhecer, mas que, como não era da cidade, mas sim de Murano, onde vivia com a família, escapava-lhe o nome das igrejas, ruas e lugares de Veneza. Iria perguntar aos outros criados e à cozinheira ou ao patrão. Voltando pouco depois, informou:

– Em Veneza ninguém conhece alguma igreja, estalagem ou rua com esse nome. Mas, lembrei-me enquanto perguntava, que numa ilha próxima de Murano, sim, existe um Mosteiro de San Michele. A chiesa di San Michele in isola. É o único templo nas proximidades votado a esse santo.

Cogitou sobre a informação. Murano não era longe. Ficaria a um escasso quarto de légua do extremo Norte de Veneza e não seria difícil encontrar um barqueiro que lá o levasse. Iria ao mosteiro e veria de que modo essa visita o podia ajudar na sua demanda do mapa. Depois, ocorreu-lhe outra possibilidade. Lembrou-se de, em tempos, ouvir seu pai, numa conversa com o avô Simão, ter falado de um convento da Ordem de São Bento onde um monge camaldulense, um tal Fra Mauro, desenhara o esboço de um planisfério que servira de base ao de Andrea Bianco o qual, por seu turno, dera lugar ao mapa do Bisagudo este, por sua vez, ao planisfério de Lopo. E esse convento situava-se ou em Murano ou numa ilha próxima… Dispôs-se a fazer a viagem até Murano.

No fundo, no vasto mar de múltiplas interrogações em que ficara, esta era a única forma que vislumbrava de seguir a frágil indicação que Saul lhe deixara escrita no pequeno papel. Se de uma indicação se tratava… Não tinha nada a perder com a tentativa e não lhe foi difícil concretizar esse projecto. No ancoradouro perto da Praça de São Marcos logo encontrou numerosos barqueiros dispostos a levá-lo à chamada ilha do vidro. Havendo muitos pretendentes à prestação do serviço, injuriando-se e atropelando-se, foi-lhe fácil sem grande regateio negociar um preço favorável para a ida e para o regresso. A distância era pequena, um quarto de légua ou seiscentas toesas a partir de Fondamente Nuove que o barqueiro, embora remasse sem pressas e nunca parando de falar, cobriu em menos de meia hora. Atalhou pela esquerda, a caminho da Riva degli Schiavoni, entrando num canal, o Rio delle Galeazze, ficando logo na chamada Laguna Morta pela qual se ia para Murano.

Do pouco que conseguiu entender da explicação que, sobre Murano enquanto percorriam o canal que conduzia à laguna, o homem lhe ia dando em italiano misturado com o dialecto veneziano, a localidade estava instalada sobre cinco pequenas ilhas. Desde há dois ou três séculos que ali se fabricavam belos artefactos em vidro. Por isso lhe chamavam l’isola del vetro. Quando conseguiu fazer compreender que não estava interessado em comprar objectos de vidro, mas sim em visitar o mosteiro de San Michele, o barqueiro mostrou-se amedrontado. Em Murano, informou, não havia nenhum mosteiro de San Michele, havia sim a grande e belíssima basílica de Santa Maria e Donato.

Segundo conseguiu explicar no seu falar dialectal, a igreja e o mosteiro de San Michele estavam numa outra pequena ilha vizinha e, junto do mosteiro, apenas havia um cemitério, o cemitério de Veneza e, a essa pequena ilha vizinha de Murano, todos chamavam a isola dei Morti, a ilha dos mortos. Como ainda era de manhã cedo não haveria problema, acrescentou supersticiosamente o barqueiro. Se fosse à noite daria já meia-volta e regressaria. Tal como Caronte se recusara a transportar Héracles para o Inferno por este ainda estar vivo, o barqueiro fazia com muita relutância esta viagem. Mas não foi preciso espancá-lo com o remo, como Héracles fizera a Caronte para lograr atravessar o rio Aqueronte.

Amuado e temeroso, fez o resto do caminho emudecido pelo receio que o destino da viagem lhe causava, bem como pela perspectiva de ficar sozinho à espera de que o cliente tratasse do seu assunto, pormenor que também lhe era desagradável. De resto a pequena ilha, ficava ainda mais próxima de Veneza do que o lugar de Murano. Quando chegaram junto do embarcadouro da ilhota, Lourenço saltou em terra. Prometeu demorar pouco tempo, embora não fizesse a mínima ideia do que ia procurar, de como procurar, ignorando por estas razões quanto tempo iria demorar na execução de uma tarefa que começava por não saber se existia.

Atravessando uma pequena praia de seixos, contornou o muro do grande cemitério e em breve, na ponta Norte da ilhota, começou a ver a torre da igreja e as paredes do mosteiro. Chegado junto de um portão de madeira, puxou a corda de uma sineta que ecoou no interior da construção. Decorrido algum tempo, a grande porta de madeira foi aberta e perante os olhos do português surgiu um frade jovem, rotundo e de baixa estatura, vestindo o hábito branco dos Beneditinos que, com ar afável e sorridente, lhe perguntou o que pretendia. Era, de facto, não um, mas diversos problemas os que agora se apresentavam. Dois deles, grandes. O primeiro consistia na sua grande dificuldade em se exprimir em italiano compreensível, o segundo era ainda maior – não sabia o que queria. Por isso, tomou rapidamente duas decisões – falar em castelhano e perguntar pelo mapa, que era aquilo que, de facto, pretendia.

O frade pareceu confuso pois, embora compreendesse um pouco do idioma, a pergunta sobre o mapa parecia não fazer qualquer sentido. O aspecto limpo e próspero do rapaz, bem como os seus modos educados, tranquilizaram-no, apesar de ter olhado com receio para a espada que fazia volume atrás, sob o manto. Após uma leve hesitação, mandou-o entrar para o vestíbulo fresco, forrado de azulejos, e pediu-lhe que esperasse um pouco – ia, disse, chamar um irmão que falava bem o castelhano e que, por certo, saberia entender-se melhor do que ele com o jovem estAo cabo de alguns minutos, voltou com outro frade, este mais velho, mais alto e mais magro. Era um homem de meia-idade e de olhar vivo penetrante, revelando perspicácia. Um fino círculo de cabelo escuro rodeava a grande tonsura própria da ordem. No rosto anguloso e pálido, um pouco inexpressivo, só os olhos brilhavam como dois lumes. Encaminharam-se os três para a biblioteca da abadia, Quando Lourenço e o segundo frade se sentaram junto de uma janela e irmão mais jovem e mais gordo os deixou, disse para o português, num castelhano perfeito:

– O irmão Adalfredo disse-me que lhe perguntastes por um mapa. De que mapa falais?

 

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