A IDEIA – textos e escolhas de António Cândido Franco – AS PRISÕES EM PORTUGAL NO SÉCULO XIX – por António Pedro Dores

PRISÃO COMO ESPONJA MÁGICA

Tal como os médicos tradicionais arranjam umas esponjas que retiram dos doentes os males de que padecem, inflando as primeiras para transportar para longe os segundos, assim as prisões criam o mundo do crime para salvar as sociedades dos seus males. E a coisa parece funcionar. Pelo menos no campo da magia.

É preciso todo um sistema criminal para encenar o mundo do crime. As prisões são a sua universidade dramática. Também as escolas de arte formam os artistas que os empresários culturais depois usam para fazer dinheiro. Grandes investimentos – uma guerra contra as drogas mais as custas de cada preso, cerca de 3 salários mínimos – são afectos ao sistema, sem que se ouça alguém perguntar: “Quanto custa? Quem paga?”

Participei em sessões para “sociedades sem prisões”. Sessões cordatas e animadas acabavam sempre da mesma maneira: “as prisões são uma barbaridade. Mas onde é que se meteriam, então, os criminosos?”

Isto é: também as vacinas têm riscos e custam dinheiro. Há gente que morre da vacina e as vacinas podem ser utilizadas para fins comerciais ou até perversos, como a invenção de pandemias globais. Mas as vacinas comprovadamente salvam vidas. As prisões apenas destroem pessoas em vida, sem prevenir crimes. Ao contrário, como bem sabem os comités de prevenção da tortura, encobrem os piores crimes.

As prisões portuguesas

Comparadas com as africanas ou brasileiras, as prisões portuguesas parecem melhores. A humidade, a fome, a falta de higiene, a comida estragada que faz com que até os famintos se recusem a comê-la, a violência gratuita estimulada superiormente, estão presentes (desconhecido, 2011). A política carcerária tem duas vertentes: fazer penar e expressar publicamente o fingimento de que não é isso que se passa nas prisões. Em termos jurídicos diz-se que as condenações à prisão têm duas finalidades: cumprimento de pena e ressocialização. A lei portuguesa, conhecedora da incapacidade tradicional de organizar um sistema de ressocialização capaz de fingir de forma eficaz, chama a ela própria o fingimento: decreta como única finalidade das prisões a ressocialização. Desse modo, o próprio cumprimento de pena é a ressocialização. À saída, cada um já deve vir ressocializado. Sobretudo porque o tempo efectivo de cumprimento de penas em Portugal é 3 vezes o da média europeia e o número de mortos é duas vezes maior. Quem não sai já ressocializado do isolamento penitenciário é porque não soube aproveitar as oportunidades. O nosso ordenamento jurídico, repetem os juristas de pacotilha e sem escrúpulos, não prevê a possibilidade de se impor nenhum tratamento de reinserção a quem não manifeste adesão a esse tratamento. Sobre torturas nada dizem.

Auschwitz era pior que as prisões actuais? Depende. Para aquele toxicodependente que foi abandonado na sua cela por quatro dias para morrer – “porque era a sua vontade” – talvez fosse mais humano ter sido gazeado. Para o outro revoltado que foi às trombas de um guarda que lhe faltou ao respeito e apareceu pendurado num corda na cela disciplinar, sem ter sido castigado, e com ossos partidos – talvez por se ter torturado um pouco antes do suicídio – não terá sido muito diferente, seja qual for a motivação do empreendimento no quadro do qual morreu. Haverá um inferno pior que outro? Haverá desumanidade mais profunda que outra? Esse discernimento é ofício de torturadores, como o sr. Bush e os seus capangas (Zimbardo, 2007).

Álvaro Cunhal (Cunhal, 2008:89-90) escreveu duas páginas sobre a sua experiência nas prisões de Salazar. Descreveu quatro dias que passou na presença de esbirros torturadores, que lhe aplicaram desde os espancamentos à tortura do sono. Para concluir que a verdadeira tortura foi o isolamento que se lhe seguiu. A prisão propriamente dita.

Na Turquia, poucos anos atrás, os presos políticos de extrema-esquerda organizaram uma greve de fome rotativa durante vários anos. Protestavam contra a substituição do sistema carcerário em camaratas para um sistema de celas individuais, importado da Alemanha. Sim, a cela individual é a mais pesada das torturas.

Será, então, pior tortura viver amontoado pelo chão, como em África ou no Brasil, ou isolado como nos EUA ou em Portugal? Não sei nem quero responder.

Sei, isso sei, a cumplicidade dos intelectuais no silenciamento deste assunto. Primo Levi, por exemplo, escreveu dois livros extraordinários pesquisando a natureza humana a partir da sua experiência em Auschwitz, que o tornaram conhecido mundialmente. O segundo livro, quarenta anos depois, foi para dizer que o mundo já se tinha esquecido do que houvera acontecido.

A sociedade comporta-se como uma mulher batida. Embora as experiências sejam humilhantes, qualquer desculpa dos abusadores, no caso do sistema criminal a intenção de fazer justiça, chega para pôr uma esponja sobre o assunto – a esponja outra vez. Há um processo mágico que não é apenas típico do sistema criminal. Marca toda a sociedade: a gente toma conhecimento daquilo que prefere que seja a realidade, ignorando os factos. E a realidade preferida é que os maus vão para o inferno e os bons vão para o paraíso, quando morrem. É esse o sucesso das séries criminais, como da esmagadora maioria dos filmes. É essa a segurança que nos traz a vileza tornada virtude, pela mágica prisional.

A Falta de uma Sociologia das Prisões

A ideia panglossiana da sociedade moderna, a nossa, ser a melhor sociedade que alguma vez existiu deve muito ao sistema penitenciário. Ele vacina-nos contra o crime. Todos os que não estamos a viver em privação de liberdade juridicamente decretada somos oficialmente livres. Criminosos são os presos; presos são os pobres. Logo, criminosos são os pobres. Esta tese não resiste à lógica. Porém, é Merton (1970) que fez escola na sociologia. Justificou o injustificável, com aceitação e talvez alívio gerais, destruindo a profundidade e a pertinência sociológicas do conceito de anomia (Dores, 2003).

A sociologia não explica, não tem sido capaz de explicar, por que razão são praticamente só homens quem vão presos. Nem explica por que razão são só alguns, sempre os mesmos, que vão presos. Não pode explicar porque a mensagem da sociologia é a da valorização da modernidade como uma abstracção pura. O que é moderno, como dirá qualquer comercial, é que é bom.

Quando se pergunta o que é moderno, ninguém sabe ao certo. A confusão é tamanha que os historiadores usam a expressão para designar a idade que termina precisamente quando começa a idade contemporânea e os sociólogos usam a mesma expressão (certamente para desconversar) para designar as potencialidades imaginárias das sociedades pós-revolucionárias, do século XIX em diante. Grande parte da literatura sociológica entretém-se a procurar a melhor abordagem da modernidade. Uma noção semelhante, em vários sentidos, com a de crime. Vejamos.

Como o crime, a modernidade não tem substância. É pura criação literária. Um crime, como o carácter moderno, é um atributo que se aplica, sob forma de controvérsia, a alguma acção. Se eu disser que um banqueiro é criminoso, logo aparece alguém a dizer que não. Se a acusação recair sobre alguém socialmente isolado, ninguém irá defendê-lo. É assim que se fazem criminosos. Se eu disser que as prisões são modernas, como o fez Foucault, isso pode ser contestado: a prática do sequestro pelos Estados é uma prática fundadora do poder estatal. Mas, claro, Foucault tem muito mais peso depois de morto que eu vivo. A discussão não pega.

Crime é o que os tribunais (ou os jornais) decidem. Moderno é aquilo que os modernistas entendem ser. Quem se atreve a denegrir o moderno ou a valorizar as acções criminalizadas?

Violento é o rio, diz o poeta. E não as margens que o comprimem. A violência, no uso corrente, refere-se à violência da pessoa isolada. A violência organizada, pelas polícias ou pelas forças armadas, não é descrita como violência. É a defesa dos cidadãos, do Estado, do povo ou do país. A nossa violência é sempre defensiva. Para manter a ordem. A dualidade de critérios é que explica serem homens pobres quem vai para a prisão.

A sociedade é uma luta contra a misoginia, o elitismo e a dissimulação produzidos socialmente, milenarmente. A divisão de trabalho de acordo com o género tem de ter uma forma. A subordinação das mulheres não é a forma obrigatória mas é a forma predominante. O facto de se prenderem praticamente apenas homens decorre do facto de as mulheres estarem, de facto, afastadas socialmente de disputar os lugares de poder social. A elas está entregue a missão de serem visitas dos presos (vejam as filas às portas das prisões). Os homens, pelo contrário, são representados como ameaças potenciais aos poderosos. De facto, muitas vezes surgem do nada, das revoltas oprimidas, para lugares de topo (Dores, 2010). O poder, cego pela soberba, sem a qual dificilmente se afirma, produziu milenarmente formas de detectar e evitar, antes que seja tarde, as fontes de contestação. A selecção dos homens para as prisões a níveis de 95% é sinal da misoginia social vigente (que outro sentido poderia ter?). O sistema criminal está montado para dispersar o poder que possa surgir de baixo para cima. Mas como é cego, dispara em todas as direcções (enquanto não é politicamente manipulado). São exercícios de “justiça” para sacrifício dos desvalidos e mobilização em casos de emergência política, quando há alarme social na expressão jurídica. Incluindo quando há interesse em afastar certos grupos de poder, como nos últimos meses tem acontecido em Portugal, em Angola, no Brasil.

A alienação da generalidade das pessoas da condução dos destinos da sociedade, e de si próprios, é produzida através de um sistema geralmente representado de forma piramidal. A questão é saber como é possível ser-se dono disto tudo e viver num estado de direito. Como se aceita a miséria de grande parte da população (em Portugal, no momento, calcula-se 50% das pessoas, incluindo 1/3 das crianças com fome e muitos doentes sem dinheiro para seguirem medicação recomendada) (Caparrós, 2014). A resposta reside, em parte, no sistema criminal.

O sistema criminal separa os pobres em pobres bons e pobres maus. Os primeiros, a maioria, são dignos da caridade e os segundos são destinados às prisões. O poder cria o crime, incluindo a proibição das drogas (Woodiwiss 1988), para intimidar toda a sociedade. Para afirmar, como faziam os reis, o poder de avaliação moral não dos actos mas das pessoas. As mulheres sob a tutela dos homens. Os pobres maus sob a tutela dos bons pobres, incluindo os polícias. Os maus cidadãos sob a tutela dos magistrados. Todos sob a tutela do Estado penal.

Quem são os presos? Em Portugal os presos são 50% filhos de pessoas que estiveram presas, 60% estão por mais de uma vez em prisão, 80% viveram, enquanto crianças e jovens, em instituições de acolhimento de crianças (números estimados, pois há uma recusa oficial de estudar as prisões). Há os negros e os ciganos. Há os políticos e figuras públicas. Mas o grosso do sistema alimenta-se, qual vampiro, do isolamento social experimentado por uma parte da população. O que explica o tratamento paternalista que o sistema, os guardas, os técnicos sociais reservam aos presos e similares. Eles são filhos do abandono. Tratados como filhos da puta. E explica também a paz no inferno carcerário: a maioria dos presos nunca conheceu relações humanas humanizadas, quanto mais o direito.

São para estes que os advogados oficiosos pedem justiça para receberem os seus proventos e os juízes condenam, por falta de testemunhas abonatórias.

referências: Caparrós, M., 2014. A Fome, Lisboa: Círculo de Leitores; Desconhecido, 2011; Agressão na prisão de Paços de Ferreira. projecto tretas org. Acesso em: https://www.youtube.com /watch?v=YVHRSgVvzGo [Accessed October 25, 2014]; Cunhal, A., 2008. Obras Escolhidas II 1947-1964, Lisboa: Edições Avante; Dores, A.P., 2010. Espírito Marginal, Lisboa: Argusnauta; Dores, A.P., 2003. Proibicionismo e Anomia – uma apresentação do conceito estados-de-espírito. ISCTE. Acesso em: http://hdl.handle.net/10071/6799; Merton, R.K., 1970. Estrutura social e Anomia. In Sociologia – Teoria e Estrutura. S. Paulo: Mestre Jou, pp. 203-33; Woodiwiss, M., 1988. Crime, Crusades and Corruption – Prohibitions in the United States, 1900-1987, London: Piter Publisher; Zimbardo, P., 2007. The Lucifer Effect: understanding how good people turn evil, NY: Random House.

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