A OPINIÃO DE DANIEL AARÃO REIS – NOVOS MOVIMENTOS, OUTROS LIMITES

 

Nos anos 1960 do século XX, há cinquenta anos, surgiram concepções e movimentos que interpelaram tradições conservadoras de direita e de esquerda. O ano de 1968 foi especialmente quente, mas, como assinalou Marcelo Ridenti, os tremores que agitaram as sociedades nem sempre se deram com a mesma intensidade num ano preciso. Assim, os marcos cronológicos daquela época agitada ainda dividem os especialistas.

O epicentro do terremoto situou-se nos EUA, porém,  se estendeu com diferentes características por quase todo o mundo alcançando a Europa, Ásia e América Latina.

Brotou o movimento das mulheres, questionando a autoridade masculina, reivindicando igualdade de direitos na economia e nas relações afetivas; exigindo o compartilhamento do trabalho doméstico e da educação dos filhos; o controle sobre a reprodução biológica e o direito das mulheres interromperem por sua vontade a gravidez. Novas leis deveriam  autorizar e  proteger  a emancipação feminina.

Apareceu o chamado poder jovem.  Nas escolas e universidades, os jovens questionavam as autoridades consagradas. As relações hierárquicas foram desafiadas. Interdições insensatas, negadas. Proibições, inquiridas. Os estudantes recusavam a lógica excludente de um saber e de um poder  esclerosados, incapazes de dar conta dos seus interesses e indagações. Nos EUA, já ninguém queria ser mutilado ou morrer nos arrozais vietnamitas. Na China, a supremacia do Partido Comunista foi posta em questão.  Na Europa, no “maio francês”  os estudantes armaram barricadas nas ruas. Logo depois,  uma greve geral operária contestou a ordem do Capital. O general De Gaulle murmurou: trata-se de um “chienlit” (bagunça). Bagunçada e injusta,  gritaram os estudantes, é a desordem que seu governo representa e defende.

Vieram à luz movimentos identitários. Os negros estadunidenses assumiram um papel destacado.  Através da  luta pelos direitos civis, liderada por Martim Luther King Jr., reivindicaram o fim da discriminação racial, considerada inconstitucional; numa outra via,  os Panteras Negras, de Bobby Seale e Huey Newton, e os muçulmanos radicais, de Al Haji Malik Al-Shabazz, o Malcolm X, propunham o enfrentamento armado: que os brancos fossem para o diabo com seu racismo. Caberia aos negros fundar repúblicas próprias, onde pudessem viver em paz.

Ao mesmo tempo,  desenvolveu-se o movimento dos povos indígenas que viviam no território dos EUA. Genocidados, invisíveis há séculos, levantavam-se, exigindo  cidadania.

É verdade que, entrelaçados com os novos movimentos, reiteravam-se   propostas de violência. O Che Guevara, morto na Bolívia, era homenageado nas manifestações. A luta do povo vietnamita recebia a solidariedade geral.  Contudo,  estas associações  não chegaram a apagar a evidência de que estava surgindo  um novo paradigma de luta social, mais fundado na conquista de direitos do que na tomada do poder; mais na persuasão do que na eliminação dos adversários; mais na afirmação e aprofundamento dos valores democráticos do que na ditadura política; mais na organização autônoma das gentes do que na filiação às organizações tradicionais de partidos e  sindicatos.

Houve um momento em que tudo parecia possível, a renovação radical do cotidiano e do poder parecia ao alcance das mãos.

Havia ali, no entanto,  limitações imprevistas.

A força do conservadorismo – de direita e de esquerda – fora muito subestimada.  Até hoje as vertentes conservadoras são pouco estudadas. Dá-se preferência ao caráter épico das propostas  revolucionárias, subestimando-se as forças da permanência e da inércia. Ora, foram elas que predominaram, nos EUA, na França, na Tchecoslováquia, na China, no México e no Brasil do AI-5.

Evidenciou-se o  caráter fragmentado dos novos movimentos. Eram fortes em seus vetores específicos, mas frágeis na capacidade de coordenação; fortes na auto-organização dos interessados, mas fracos na capacidade de aglutinação e de agregação de outras correntes; fortes na defesa dos interesses específicos, fracos na perspectiva de construção de programas comuns que disputassem a hegemonia na sociedade global.

Assim, superados pelas forças conservadoras e pelas próprias fraquezas e limitações, os novos movimentos sofreram derrotas sucessivas.

Suas questões, contudo,  permaneceram alimentando lutas que iriam, mais tarde, registrar ganhos significativos, como as leis que atualmente, em muitas sociedades,  protegem a interrupção voluntária da gravidez, os direitos civis dos negros,  os direitos de assumir suas preferências sexuais, além de inovações  no âmbito da educação e das relações afetivas.

Ficaram  para a reflexão a necessidade de  melhor compreender a resiliência do conservadorismo social e político  e o potencial e os limites destes novos movimentos,  a  desafiar a imaginação dos não-conformistas e dos que desejam ainda mudar a ordem existente.

Daniel Aarão Reis

Professor de História Contemporânea da UFF

Email: daniel.aaraoreis@gmail.com

Leave a Reply