AINDA SOBRE A ESCALADA DA GUERRA FRIA, UMA NOVA SÉRIE DE TEXTOS – a introdução por JÚLIO MARQUES MOTA

 

Ainda sobre a escalada da guerra fria, uma nova série de textos

Introdução

Durante estas duas semanas todos nós temos sido bombardeados até à exaustão, numa escalada perigosa, a caminho, para já, de uma verdadeira guerra diplomática.

Neste período assistimos nos média a uma vaga de russofobia que foi um verdadeiro escândalo. Putin era o inimigo público nº1 e quem não aceitasse repudiá-lo, não podia ser considerado como progressista. Nesta tarefa, quase toda a gente em uníssono afinava pelo mesmo diapasão. O raciocínio era tipo pensamento único, quem não é por nós é então contra nós. O esquema estava pois feito. Não havia alternativa, não havia como escapar ao dilema posto por estes nossos jornalistas. Ou se aceitava Putin e não se era progressista, ou não se aceitava Putin, e teríamos então, logicamente a posição inversa. Mas não aceitar Putin era estar a defender as teses de Trump, de Theresa May e de Boris Johnson. Desta maneira poderíamos alcançar o estatuto de progressistas. E em boa companhia, não só dos nossos jornalistas encarregados de difundir uma dada bandeira, mas em companhia dos mais perigosos líderes políticos do Ocidente.

Essa é a companhia que os nossos jornalistas, porta-estandartes de uma verdade sem nenhuma prova seja do que for, nos querem oferecer.

Mas este comportamento de verdadeira histeria não se verificou apenas aqui, em Portugal. No caso inglês a BBC foi ao ponto de transformar uma fotografia de Jeremy Corbyn para que este tivesse um look pró-russo e a mensagem de desaprovação do que ele diz passasse melhor:

A imagem dada pela BBC:

A imagem sobre a qual os “artistas” da BBC atual trabalharam:

E tudo isto porquê? Porque Corbyn exigiu explicações quando se soube que o Ministro dos Negócios Estrangeiros Boris Johnson mentiu.

“”Boris Johnson parece ter excedido completamente a informação que lhe foi dada e disse ao mundo em termos categóricos o que tinha acontecido e não foi apoiado por provas que ele pretendeu ter recebido de Porton Down em primeiro lugar. Boris Johnson precisa pois de responder a algumas perguntas “, disse Corbyn à Sky News.

Na mesma linha de Corbyn podem-se ler as declarações de Willy Wimmer que ocupou o cargo de Vice-Presidente na Assembleia da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) de 1994 a 2000, e que anteriormente serviu como secretário de Estado do ministro da defesa da Alemanha, que nos diz:.

 “O Reino Unido está a explorar a solidariedade europeia e a comportar-se como um “estado mafioso” ao promover acusações de belicismo e excluindo a Rússia da investigação de envenenamento de Skripal”, disse à RT o ex-vice-presidente da Assembleia da OSCE.

O comportamento da Grã-Bretanha no escândalo de envenenamento de Skripal é “um grande perigo para a paz internacional”, acredita Willy Wimmer, que ocupou o cargo de vice-Presidente na Assembleia da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) de 1994 a 2000, e que anteriormente serviu como secretário de Estado do ministro da defesa da Alemanha.

“Acho que chamaríamos a esse Estado de mafioso porque num caso de crime o governo britânico se comportou contra todas as regras e regulamentos europeus e internacionais em relação a outro país”, disse Wimmer à RT.

O Reino Unido tem uma longa história de pressionar a retórica belicista, disse Wimmer, lembrando a decisão da Grã-Bretanha de ir para a guerra no Iraque. “Nós, como europeus, temos uma experiência com os ingleses. Nós só temos que olhar para trás para Tony Blair. Eles mentem de uma guerra para a seguinte. “O aguardado relatório de Chilcot, publicado em 2016, ofereceu uma crítica condenatória a Blair, afirmando que ele exagerou deliberadamente a ameaça representada pelo regime iraquiano e por ter confiado em “ defeituosos” serviços de inteligência.

“E é por isso que acho que, tanto quanto os britânicos não se comportem de maneira apropriada, legal e internacionalmente, acho que devemos acreditar que essa é mais outra mentira britânica, pelo menos para ir à guerra contra a Rússia”, acrescentou Wimmer..

O ex-vice-presidente da OSCE disse que a posição da UE de solidariedade para com o Reino Unido era um comportamento aliado normal mas alertou que o bloco poderia e deveria ter pensado duas vezes antes de fazê-lo novamente no futuro.

“Se um país pede solidariedade e apoio, este é-lhe dado pelos outros países parceiros porque de outra forma não se pode administrar certas organizações como a UE ou a NATO. O que os britânicos estão fazendo – o governo de Theresa May está explorando essa vontade de solidariedade, que é um dos fundamentos básicos da União Europeia e da NATO. ”

Uma outra linha de explicação que não se distancia do que se acabou de dizer é-nos apresentada pelo antigo embaixador britânico Craig Murray[1], num tweet que aqui deixamos em inglês:

O antigo embaixador  britãnico   refere ainda[2]:

“Os agentes neurotóxicos, incluindo Sarin e VX, são fabricados pelo governo britânico em Porton Down, a apenas 13 km de onde Sergei Skripal foi atacado. A história oficial do governo britânico é que esses agentes nervosos só são fabricados “para ajudar a desenvolver contramedidas médicas eficazes e para testar sistemas”.

Praticamente todos os media ingleses aceitaram que  a produção de polónio pela Rússia era uma prova concludente  de que Vladimir Putin era pessoalmente responsável pelo assassinato de Alexander Litvinenko. No caso de Skripal, há artigos como esse hilariante que é publicado pelo Guardian em que especulam sobre a origem do agente neurotóxico – embora não mencionem o fato de que o incidente com Skripal ocorreu apenas a 13 Km do sitio onde está o maior estoque de agente neurotóxico  na Europa Ocidental.

Estamos pois longe da posição de Theresa May  de que foram os russos porque ela não encontra outra explicação, e é esta explicação que foi aceite por aqueles, que salvo prova em contrário, se podem considerar como os portadores de  falsas bandeiras. Mas com os argumentos acima, estamos pois longe também da argumentação dos jornalistas portugueses, entre as quais a do historiador Rui Tavares, para quem as afirmações do ministro Boris Johnson bastam, mesmo sem apresentar qualquer prova.

Este tipo de argumentação, de May e dos seus seguidores,  repete-se por todo o lado, e até na muita (outrora) respeitada BBC se faz a mesma coisa. A estar certa a tese de que um progressista só pode estar contra Putin, então é o próprio líder do Partido do Partido Trabalhista que, no limite, pode ser apelidado de inaceitável e vergonhoso russófilo, e talvez mesmo até acusável de fascista,  pois não está em clara oposição a Putin. Curiosa conclusão da nova esquerda em Portugal, esta, colocando-se pois ao lado das forças mais reacionárias que querem comandar o mundo. Com os diabos, tudo isto parece inacreditável.

Curiosamente uma jornalista americana, Caitlin Johnstone, tipifica bem este tipo de comportamento:

“Em Setembro do ano 2000, o extremamente influente centro de reflexão e de pressão neoconservador Project for the New American Century publicou um relatório intitulado “reconstruir as defesas da América”, que estabelecia uma agenda para garantir aos Estados Unidos o domínio mundial num mundo pós-guerra fria. Este apelava a enormes mudanças, a mudanças radicais no modelo atual da política externa americana, sobre o qual nos dizem:

Além disso, o processo de transformação, mesmo que traga mudanças revolucionárias, é suscetível de ser um processo longo, na ausência de algum evento catastrófico e catalisador – como um novo Pearl Harbor.”

Um ano depois, os neoconservadores têm o seu “novo Pearl Harbor” na forma do 11 de setembro.

Seguindo a página de título de “Reconstruindo as Defesas da América”, o leitor encontrará uma introdução intitulada “Sobre o Projeto para o Novo Século Americano”, que começa da seguinte forma:

“Estabelecido na Primavera de 1997, o Projeto para o Novo Século Americano é uma organização educacional sem fins lucrativos cujo objetivo é promover a liderança global americana. O Projeto é uma iniciativa do Projeto Nova Cidadania. William Kristol é o presidente do projeto, e Robert Kagan, Devon Gaffney Cross, Bruce P. Jackson e John R. Bolton atuam como os seus diretores.

O império centralizado nos EUA agora está de acordo com os seus próprios dados e a entrar num estado de “pós-primazia”, o que significa que, para avançar a agenda neoconservadora de dominação global, algo de drástico terá que ocorrer. Na minha opinião, é para isso que estamos a ser preparados com toda essa ininterrupta propaganda anti Rússia, hoje.

Esta preparação tem sido necessária. Se em 2015 os nossos senhores de Washington nos dissessem que uma guerra contra a coligação do Irão, Rússia e China era inevitável por causa de algum novo evento traumático, o público teria dito: “Não, bolas, não estamos disponíveis para a fazer. Isto realmente teria sido um caso de guerra e ninguém apareceria. A ilusão teria sido quebrada, a confiança no establishment teria sido destruída, a confiança na máquina de propaganda dos media nunca mais seria restaurada, e uma larga porta seria aberta para todos nós jogarmos fora as maquinações das estruturas de poder existentes e construirmos algo de novo e saudável.

Assim, eles têm necessidade de nos preparar, e eles têm-no feito com um sucesso notável. Antes do final de 2016, o americano médio raramente pensava na Rússia, quase nunca pensava em Vladimir Putin e não fazia ideia do que era o Kremlin. Agora, o ódio pela Rússia está na vanguarda da consciência na América, e agora também infetou o Reino Unido e está rapidamente a espalhar-se por toda a Austrália e Europa. A madeira tem sido lentamente seca para algum grande evento futuro, e um evento de bandeira falsa será como um fósforo aceso em lenha rapidamente inflamável. Os media vão pegar nessa bandeira e fazê-la espalhar pelo mundo com uma enorme força e rapidez e as pessoas serão arrebatadas pelo medo em direção à saída pela guerra.”

(…)

“[ As falsas bandeiras] não terão que vir do governo dos EUA. O novo império ocidental é virtualmente sem fronteiras, e qualquer governo ou grupo que lhe seja leal pode ser recrutado para ajudar a desenvolver uma tal agenda, dificultando a identificação de uma bandeira falsa. É provável que seja necessária muita clareza interior para ver o engano em primeiro lugar.”

Por contraponto às teses até aqui defendidas aqui apresento dois textos:

1. Sobre as falsas bandeiras, um texto de Caitlin Johnstone

2. Um relatório dirigido ao editor do New York Times, um texto de Andrew Bacevich

1. O texto de Caitlin

Trata-se de um texto que nos fala sobre o que pode estar por detrás das falsas bandeiras , e o que pode estar pior detrás delas pode ser mesmo muito perigoso. Na linha do que nos afirma esta  analista, uma das leituras que se pode fazer do presente caso e tal como é pateticamente apresentado, é que mais uma maquinação da escalada da guerra fria que tem sido praticada a partir de Washington , uma falsa bandeira nessa escalada, uma falsa bandeira que os nossos analistas políticos  e jornalistas têm assumido de bom grado e com sucesso. Essa é a tese de Caitlin Johnstone  e de muitos outros comentadores que não fazem parte dos autorizados ou consentidos  criadores de opinião pública. Dado a embrulhada em  que  as autoridades americanas,  inglesas e os seus seguidores se enfiaram, dada a forma aguerrida e demagógica assumida pela imprensa  ao serviço da difusão  destas falsas  bandeiras, tanto a imprensa  oficial como  também  a feita por aqueles que efetivamente o são  mesmo que se autoproclamem de analistas independentes, somos levados a considerar como muito plausível a tese de  Caitlin Johnstone  acima reproduzida. Num outro texto seu diz-nos ela:

“O furor sobre o alegado envenenamento dos  Skripal insere-se  perfeitamente no modelo  que temos vindo a utilizar como  campanha contínua do império ocidental para criar um clima de histeria na opinião pública e de modo a que esta acredite  que esta escalada contra uma das potências nucleares é o que melhor serve os seus interesses. Estamos a ver a típica falta de provas  quanto  à  grave acusação feita, o relato típico unilateral de todos os meios de comunicação de massa que colaboram para nos levar a ganhar  a ilusão de um acordo unânime sobre a acusação, e a típica escalada nas tensões da Guerra Fria com os diplomatas a serem expulsos de lado a lado, com as  comunicações a serem interrompidas e com a colaboração da União Europeia à procura de se tomar  uma ação mais dura contra a Federação Russa.

Como sempre, a história oficial está no seu enredo repleta de buracos. Como sempre, quem quer que exorte a que se tenha cautela quanto a mergulhar numa nova escalada da uerra fria é considerado um colaborador do Kremlin, com acontece com Jeremy Corbyn que vê a sua imagem sobreposta na  BBC vestido com uma  roupa  típica das gentes do Kremlin sobre um fundo vermelho (e, possivelmente,  uma fotomontagem) para ter um olhar tanto quanto possível como os soviéticos.

Imagem:

Os nossos jornalistas e os nossos analistas com os mesmos argumentos que a BBC não se lembraram de fazerem este tipo de montagens.

Em 1917 um senador republicano chamado Hiram W Johnson cunhou a frase, “a primeira vítima quando a guerra aparece é a verdade”, o que significa que a guerra é sempre acompanhada por mentiras e enganos. Hoje, o décimo quinto aniversário da invasão do Iraque, é certamente um lembrete desse fato. Na guerra fria, que se baseia tão fortemente na propaganda, na espionagem e na manipulação da opinião pública para se avançar com ações económicas e politicas globais, isso é ainda mais verdadeiro.

O texto de Caitlin Johnstone parece-nos pois bem claro e salvo prova fidedigna a apresentar  pela parte de quem acusa, é este o ponto de vista que por ora adotamos, ou seja , a maioria dos jornalistas objetivamente têm-se assumido como os portadores das falsas bandeiras criadas para dinamizar um clima perigoso de guerra fria. Curiosamente, a BBC defende o mesmo ponto de vista que o jornal Público e que um dos seus analistas independente, Rui Tavares, tão veemente expôs e segundo o qual quem não é contra Putin  está então a defender  os crimes que imputam a Putin.

Os nossos jornalistas e analistas políticos tomam o lado de lá, o não Ocidente, como o Império do Mal, mas no mundo binário em que se colocam e em que nos querem colocar, isso significa que o lado bom é então o lado de cá, é o reino de Theresa May, de Boris Johnson, de Donald Trump e do seu assessor para os Assuntos da Segurança Nacional, o super falcão John R. Bolton. Um  mundo  de bons e de maus. Simplesmente isso.

2. O texto de Andrew Bacevich

Neste seu texto Andrew Bacevich analisa e critica a dualidade de critérios dos analistas e jornalistas do New York Times e fá-lo de forma dura, colocando algumas questões ao seu editor sobre o silêncio que se faz sobre as coisas que se fazem pelo lado de cá e que ele magistralmente enumera.

Se o Putin é o Diabo em pessoa por aquilo que faz e pelo que também ninguém sabe se faz, o que é uma estranha forma de crítica, então sugiro ao leitor uma leitura atenta deste texto em que se mostra à evidência que o mundo não é esta realidade binária do bem e do mal, com o bem de um lado apenas, no Ocidente, e o mal apenas do outro lado, o mundo não ocidental. Uma tese completamente oposta à que sistematicamente nos querem impingir em todos os tipos dos meios de comunicação social. O leitor que confronte então o que nos dizem nos jornais e nas televisões  com os textos em presença. Pense nisso e tome a sua posição.

Seja como for, aqui deixo eu explicitamente uma questão aos nossos leitores: porque é que  há tanto silêncio à volta dos temas levantados por Bacevich relativamente ao que tem sido a prática do Ocidente nestas últimas décadas?

Na base dos textos em presença e das  respostas  que cada um de nós encontre, não espere pelas dos jornalistas,  isso permitirá ao leitor aquilatar das razões ( ou da falta delas) de fundo que  levaria então os media a acreditarem que a palavra dos líderes ocidentais, sem qualquer prova, é razão mais que suficiente para se passar por cima de  todas as regras internacionais estabelecidas nas relações entre países e, para a seguir, acusar um país de crimes hediondos e perante isso pedir a sua exemplar punição. Em suma, trata-se de podermos descortinar o que é que leva os analistas políticos e os jornalistas, afinal, a a promover e a dinamizar uma escalada que pode levar à guerra?

Exagero da minha parte, falar aqui de guerra? Vejamos o que nos diz o New York Times:

“O  novo conselheiro para a Segurança Nacional, John R. Bolton, jurou que encontrará formas para poder  executar as políticas para as quais o Presidente Trump foi eleito, mas que não toleraria o andamento lento  e as fugas de informação dos burocratas, que ele considera como  “os anões”.

O conselheiro para a Segurança Nacional recentemente chegado à Casa Branca  apela  à  “recuperação rápida”  (“swift takeover”)   da Coreia  do Norte pela Coreia do Sul. Ele e o recém designado Secretário de Estado exortaram  à  retirada dos Estados Unidos do acordo com o Irão assinado em  2015 .”[3]

Em suma, a leitura destes nossos textos e as respostas às questões colocadas por Bacevich permitir-nos-ia aquilatar, mais uma vez, da seriedade de processos seguidos pelos nossos jornalistas e analistas políticos, relativamente à atual conjetura internacional, com exclusão logicamente e de entre os que li, sobretudo de Pacheco Pereira, no Público, e do Major-general Carlos Branco (R) no Expresso.

A partir dos textos em presença e das respostas que cada um  possa encontrar para as questões levantadas por Andrew Bacevich, o leitor poderia mais facilmente tirar as suas conclusões face ao massacre de textos apologéticos com que é bombardeado diariamente.

Coimbra 6 de Abril de 2018

Júlio Marques Mota

________

[1] Craig Murray , foi Embaixador britânico no  Uzbequistão de Agosto  2002 a Outubro de 2004 e Reitor da Universidade de  Dundee  de 2007 a  2010.

[2] Veja-se: https://www.craigmurray.org.uk/archives/2018/03/the-elephant-in-the-room/

[3] DAVID E. SANGER e  GARDINER HARRIS, New York Times, 6 de Abril de 2018, America First’ Bears a New Threat: Military Force,

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