A GALIZA COMO TAREFA – nevoeiros – Ernesto V. Souza

Acho que nunca teve clara qualquer vocação. E, por cousas da vida, nunca também me centrei numa única tarefa, trabalho ou ocupação nos que ir deixando aprender os anos. Talvez por isso (ou talvez seja essa causa e não efeito) tenho tendência a deixar projetos, tarefas e causas; uma vez atingido um objetivo mínimo, que me marcasse como possível, ou ajeitado para deixar as contas limpas, dentro de um princípio de prudência.

Uma vez conseguido, deixo, e a outra cousa. Mas com isso vou perdendo interesse em temáticas e projetos, em ideias, conhecimentos, disciplinas e sonhos que antes ocuparam muito tempo, energias da minha vida, e memória.

Alguns dos conhecimentos adquiridos a cada etapa foram-se convertendo em pousos úteis ou funcionais, em experiência. Porém, o resto, na sua maior parte é já brétema, abandono. As lembranças e os saberes vão-se transfigurando em nevoeiros difusos que terminarão por desaparecer e ser nada.

A sensação geral que me invade é de perda de tempo. De anos, passados em tarefas, perdidos, para produzir escritas supérfluas que aí ficam, espalhadas por margens diversas, emboscadas na procura de leitores.

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Biblioteca Mark Twain Branch, Detroit.

 

Nos últimos tempos tenho de mais em mais vontade crescente de deixar de escrever. Nunca escrevi por prazer, nem por vontade de exibir a minha prosa. A cousa é que não encontro temas, projetos, ideias que me apaixonem e a respeito dos que considere que tenha algo que dizer. E total, escrever para que? de que? com quem? onde? para quem?

A minha produção escrita e intelectual – que ninguém pediu – é uma produção e um conhecimento acumulado que não tem a ver com qualquer realidade profissional, vocacional ou tarefa designada. É uma simples acumulação diversa de temas e interesses pontuais, específicos, de carinhos, influências, descobertas, fantasias e também de anos e épocas diferentes de ocupações e esforços.

É como os documentos abertos em computadores e sistemas diversos,  como as caixas de notas e fotocópias,  espalhadas em casas e espaços distantes, como os livros das minhas bibliotecas pessoais, desubicadas, sem ordem, centro nem objetivo.

E vai chegando um momento em que não me interessa mais o escrito, o sabido e o lido em que não me apetece seguir, em que não tenho vontade de continuar a escrever; pois as memórias conservadas, os arquivos ainda abertos e os interesses atuais não coincidem com os volumes nas prateleiras e os papéis nas caixas. Há seções inteiras de livros, fotocópias, arquivos de computador e anotações em cadernos que já não me dizem nada, ou pior, que me assustam ou deixam o remorso triste dos pretéritos imperfeitos. Há outras, a contrário, que se abririam em interesse como novidades possíveis e futuros condicionais, se houvesse um tempo que não há.

Diletantismo de inadaptado, efetivamente, caro leitor, entre as ruínas.

1 Comment

  1. E os leitores que adoramos ler-te e que nos aprendas, que…

    Ainda o outro dia me mergulhei no teu trabalho maravilhoso sobre Ângelo Casal…A fouce, o canastro e prego.

    Do que tu aches que não vale nem paga a pena, outros estamos a nos alimentar

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