Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
À espera do Cisne Negro
Uma guerra com o Irão seria o princípio do fim
Por Chris Martenson
Publicado por em 14 de junho de 2019 (original aqui)
Mais dois petroleiros foram atacados perto do Estreito de Ormuz na quinta-feira de manhã (13/06/19) no Golfo de Omã, e se as hostilidades avançarem, poderemos estar perante um evento de “cisne negro”. Um evento que muda tudo, e divide o mundo em períodos ‘antes’ e ‘depois’.
Muitos de nós estão à espera de que ‘algo’ aconteça. Sabemos que há demasiadas tendências e práticas insustentáveis em curso e caímos no campo do “vamos apenas arrancar o penso rápido”. Alguns, como eu, perderam a fé na liderança política e nas instituições e duvidam que estas mantenham qualquer capacidade de responder a algo mais do que os seus próprios interesses, muito menos que tenham a capacidade de gerir as tarefas difíceis que estão para vir, enraizadas como estão na teoria dos sistemas e na complexidade da sua gestão.
Então, vamos continuar com este tema. Vamos a isso. Os cisnes negros são bem-vindos para aqueles que sentem que um bom pontapé no traseiro é às vezes necessário para começar a endireitar as coisas.
Tal como muitos outros, também eu estou em conflito porque também sei que entrar num novo caminho será perturbador e, provavelmente, bastante penoso do ponto de vista económico e financeiro para todos, incluindo eu próprio. A esperança de “que algo se vai quebrar” e a esperança de que nada se vai quebrar estão num equilíbrio incómodo.
Felizmente, as minhas esperanças e desejos não têm nada a ver com o que vai acontecer, nem quando vai acontecer. Eu posso também estar a praticar um ritual secreto em frente da minha televisão para me assegurar de que o lance livre da minha equipa de basquetebol prossiga. O barril de pólvora seca da próxima fogueira foi sendo colocado ao longo de muitos anos e décadas vai pegar fogo quando tal acontecer, não importando quanta negação ou quantas práticas supersticiosas pudermos empregar.
Quando é que este período atual de política monetária insana, de polarização política e de destruição ecológica se vai virar de repente para o pior é impossível de prever. Vai quebrar quando isso acontecer. Espero que não seja senão daqui por dez anos, e espero que seja já amanhã. Verdadeira ambivalência.
Um evento dito “cisne negro” é um termo criado por Nassim Taleb que tem três características:
- É imprevisível
- Tem um enorme impacto
- Depois de acontecer, toda a gente tem uma explicação para esse evento.
Há uma quarta característica honorífica que é a de que virtualmente nenhum “especialista” o viu chegar.[1]
Os eventos ditos cisne negro podem ser positivos ou negativos. Aqui está um exemplo de um “especialista” a quem falta algo de positivo:

Acho que é seguro dizer que o Paul Krugman percebeu isso um pouco mal.
A génese do termo cisne negro vem da (antiga) crença ocidental de que todos os cisnes eram brancos. 100% da sua experiência com cisnes confirmou que eles eram todos de cor branca. No entanto, em 1697, o explorador holandês Willem de Vlamingh chegou à Austrália e descobriu cisnes negros.
Quando um cisne negro é visto, ou um evento de cisne negro ocorre, tudo cai numa categoria de antes versus depois.
Quando se trata de eventos massivos, que alteram a história, embora possam ser explicados em retrospetiva por historiadores sérios como tendo sido devido a alguma coisa específica, eles geralmente tinham acumulado muita pólvora seca estava à espera de uma faísca.
Muitos de nós aprendemos que a Primeira Guerra Mundial foi ‘causada’ por um Arquiduque que foi baleado. Na verdade, se não tivesse havido muitos anos anteriores de rixas, de má política, de políticas económicas terríveis e de piores comunicações, absolutamente nada mais para além de um elaborado funeral do Estado teria resultado do tiro sobre o Arquiduque. Depois disso, todos apresentaram uma explicação simples para uma situação complexa, porque é isso que as pessoas fazem.
Hoje há uma pilha semelhante de pólvora seca à espera de uma faísca. Há demasiada dívida, há uma enorme degradação da geopolítica, da imprensa e das redes sociais que estão a esvaziar o contexto necessário como uma questão de prática habitual, informação e conhecimentos técnicos estanques e confusos, e há sinais cada vez mais alarmantes (se não aterradores) do mundo natural indicando que o tipo de crescimento económico em que tudo se baseia não pode continuar a verificar-se.
Parece que o mundo está à espera de algo, um cisne negro, a transportar um carvão ardente no seu bico.
Quando esse tempo chegar, praticamente nenhum dos especialistas na TV ou dos grupos de reflexão o terá visto chegar, quase toda a gente ficará surpreendida com o impacto, e poucos compreenderão a complexidade de como é que toda aquela pólvora seca se foi acumulando e acaba por assumir o primeiro plano.
Todos nós vamos sofrer as consequências em diferentes graus, dependendo da preparação financeira, física e emocional de cada um, bem como devido à sorte e ao aleatório azar.
O Estreito de Ormuz e as Dívidas Globais
Então vamos começar por ligar alguns pontos que eu acho que têm o potencial de ser o evento do cisne negro que muda tudo.
O primeiro é a enorme pilha de dívidas e de reconhecimento de dívidas, emissão de papel moeda sem nenhum outro suporte que não seja a confiança que os bancos centrais do mundo permitiram.
Quanto mais dívida estiver a carregar enquanto nação, empresa ou indivíduo, melhores coisas têm que lhe acontecer financeira e/ou economicamente. A dívida torna-nos mais vulneráveis a choques.
O mundo nunca esteve tão profundamente endividado, nem nunca teve tantos reconhecimentos de dívidas subfinanciadas ou sem financiamento na forma de promessas de pagamento de pensões e de pagamento de direitos.
Este é pois o barril de pólvora financeiro à espera de uma faísca:
O aumento de quase US$100 milhões de milhões na dívida global desde o início da Grande Crise Financeira é um ato sem precedentes. Foi também um ato de fé. Isto é algo que está enraizado na ideia de que o crescimento do PIB global viria e salvaria a situação, ou pelo menos racionalizá-la-ia se é que não justificaria as novas pilhas massivas de dívida. Na verdade, este caso de amor com a dívida remonta a 15 de agosto de 1971, quando o mundo abandonou o padrão-ouro a favor da ideia de que as próprias dívidas poderiam ser a garantia da dívida existente.
Note-se que praticamente nenhum “especialista económico” está publicamente preocupado com o enorme aumento das dívidas. Se estivessem, não seriam “especialistas” conhecidos publicamente, porque ninguém os convidaria a falar sobre as suas ideias. Num sistema dependente do crescimento exponencial do crédito, ninguém quer ouvir falar de como essa é a longo prazo uma má ideia.
Por pior que sejam as dívidas, as responsabilidades ou reconhecimento de dívidas sem financiamento – as IOU’s [2] nesta história – são 2 a 4 vezes maiores do que as próprias dívidas, dependendo do país.
Nos EUA, toda a pilha coletiva – dívidas mais reconhecimento de dívidas IOU’s – resultou em 1100% do PIB em 2017. Isto é, 300% para a dívida e 800% para os passivos subfinanciados.
Note que a parte da dívida do gráfico acima (circulada em laranja) é na verdade a parte menor desta história, mesmo que essa parte menor normalmente receba a maior parte da atenção pela imprensa.
A única maneira de racionalizar ou justificar tal pilha de IOUs e dívidas é o rápido crescimento económico. E a única maneira de conseguir isso? Petróleo barato e abundante. O que nos traz de volta à recente onda de ataques de petroleiros perto do Estreito de Ormuz através do qual circula diariamente cerca de 30% de todo o petróleo exportado.
O papel do petróleo no nosso motor económico é enormemente subestimado pelos habituais “especialistas” económicos. Para eles, a energia é uma substância que aparece magicamente sempre que necessário. Não têm uma compreensão mais profunda do que esta. Para mim, a energia é O recurso principal sem o qual nenhuma outra atividade é sequer possível. O leitor que me mostre qualquer coisa que possa comprar, fazer ou consumir e eu lhe mostrarei como o petróleo era um precursor essencial.
É tão simples como isto. As pilhas cada vez maiores de dívida (e de reconhecimento de dívida – IOU) são um apelo explícito para uma economia maior no futuro.
Então, o leitor quer mais economia? Então vai gastar mais energia. Em particular, o leitor quer mais economia global, com tudo enviado para cá e para lá e com cadeias de abastecimento de 30.000 milhas? Então o leitor vai usar mais energia e mais petróleo especificamente.
Mais de 50 anos de dados o dizem:
O gráfico acima mostra que o consumo mundial de energia está estreitamente associado ao crescimento económico. Mais economia = mais energia consumida. Esta relação também é linear. Muito fácil de entender, mas a maioria dos especialistas económicos não se preocupa com essas informações. Esta relação viola as suas visões dogmáticas sobre o imperativo necessário para o crescimento sem fim, o que significa que ela viola literalmente tudo o que eles sabem e em que acreditam. Então eles não ‘vão lá’.
Eles acreditam falsamente que o crescimento económico faz com que os recursos energéticos se tornem disponíveis. Eles estão errados. É ao contrário. Os recursos energéticos permitem que o crescimento económico ocorra. A maioria acredita que o crescimento infinito num planeta finito não só é possível, mas é uma coisa boa, apesar das montanhas virtuais de dados ecológicos e de recursos sombrios em sentido contrário.
O petróleo é uma substância estranha do ponto de vista económico. Se houver até mesmo uma pequena percentagem a mais saindo do solo (oferta) em comparação com a procura, o preço cai. Por outro lado, se houver mesmo que seja uma ligeira escassez, os preços sobem acentuadamente.
No entanto, dada a importância do petróleo, não deveríamos concentrar-nos apenas no seu preço, embora isso seja importante, mas também na sua disponibilidade. Sim, a escassez conduzirá a picos de preços, que esmagarão os países sobreendividados, as empresas e os particulares, mas a escassez conduzirá também, por necessidade, a uma menor atividade económica. Exatamente como é que tudo isso se passa é totalmente desconhecido. Bem-vindo à teoria da complexidade que afirma que os comportamentos de sistemas complexos não podem ser previstos. Eles podem ser observados. Quanto ao que realmente acontece chamam-lhes comportamentos emergentes.
Se ocorrer uma guerra com o Irão, e o Estreito de Ormuz for fechado por qualquer período de tempo (digamos, mais de um mês), haverá uma escassez de petróleo que levará a um pico de preços. E a uma escassez física. Como é que tudo isto funciona num mundo que geme sob o peso de muita dívida não se sabe, mas seguramente não lhe será favorável. Nem bonito, nem desejado.
O que acontece com sistemas complexos de entrega global, integrada e just-in-time também não se sabe. Mas não será coisa boa nem coisa bonita. Só teremos que assistir como as perturbações das cadeias de abastecimento se espalham por um universo complexo de derivados, 12% de empresas zumbis, empréstimos em regime Covenant-Lite [3], US$ 4 milhões de milhões de dívida denominada em dólares de mercados emergentes, já surpreendentes défices orçamentais, pensões subfinanciadas e tudo o mais.
Com os novos ataques a mais dois petroleiros no Golfo de Omã, e a culpa imediata atribuída ao Irão por parte dos EUA, há um risco muito maior do que o aceitável de haver uma guerra muito prejudicial que irá fechar o Estreito de Ormuz.
O mundo está sentado sobre uma enorme pilha de dívidas e de reconhecimento de dívidas relacionadas. Uma pilha que poderia facilmente pegar fogo e arder com a mínima provocação. Embora os bancos centrais possam imprimir dinheiro, criar as condições financeiras mais fáceis desde há décadas e intervir constantemente em palavras e atos em todos os mercados financeiros (o que fazem), a única coisa que não podem fazer é imprimir mais petróleo.
Se o Estreito de Ormuz for encerrado por algum tempo, isso será um evento de cisne negro. Será imprevisível, terá um grande impacto, e depois as pessoas tentarão explicar as complexidades resultantes de forma simplista.
É preciso ter um plano para o que se vai fazer se ou quando isso acontecer. Todos o fazem.
Já existem sinais de que o tráfego de petróleo através do Estreito de Ormuz diminuiu um pouco, talvez para permitir que os riscos de seguro sejam resolvidos. É razoável sugerir que levará tempo para avaliar os riscos reais e aplicar novas políticas e tarifas. Entretanto, alguns navios ficarão ancorados ou no porto.
Um choque no preço do petróleo e na oferta é exatamente o tipo de acontecimento tipo cisne negro que surpreenderá quase toda a gente. A narrativa tem sido uma narrativa de abundância alimentada a xisto por tanto tempo que praticamente ninguém está a pensar no lado oposto dessa história.
Depois do facto, muito tempo depois que o dano tenha sido feito e a poeira tenha assentado, os historiadores podem olhar para trás e dizer “Foi um míssil variante do tipo c-308 disparado das costas do Irão que atacou e afundou o VLCC sob pavilhão saudita (o “Layla”) no centro do canal de saída do estreito de Ormuz que causou tudo o que se seguiu.”
Embora esse evento possa ter acontecido, essa explicação não será inteiramente precisa. Sem toda uma fogueira desencadeada a partir de um barril de dívida ultra-seco espalhado por aí e sem décadas de má vontade e de ações nefastas, o míssil não teria voado em primeiro lugar e a fogueira não teria sido tão feroz. Às vezes um Arquiduque é apenas isso e é insuficiente para ‘causar’ dezenas de milhões de mortes desnecessárias numa guerra que ninguém consegue explicar. Outras vezes eles são tudo isso e muito mais.
A imprensa norte-americana adora agir como se tudo isto acontecesse sem contexto e num vácuo, como se meio século de atividade dos EUA na região nunca tivesse ocorrido. Nada acontece num vácuo. Há sempre contexto, e quando se trata do Irão, há muito. Muitas décadas de interferência e de “diplomacia” contundente.
Portanto, mantenha os olhos no Estreito de Ormuz e tenha os seus preparativos e um plano a postos antes que algo se afaste mais dos carris.
Já está a ocorrer uma desaceleração económica que se transformará rapidamente numa séria recessão se/quando ocorrer um choque de petróleo. Esta terceira e a mais imprevista bolha de crédito de todas elas já durou muito tempo. Cada bolha está à procura de um alfinete – ou um cisne negro. Um choque petrolífero significaria o aparecimento de todo um bando de cisnes negros contra os quais os bancos centrais ficariam impotentes.
Será isto simplesmente o fim da “Bolha de Tudo”? Ou será este o fim da Grande Experiência de Crédito iniciada em 1971?
O primeiro será muito doloroso, o segundo mudará tudo para sempre e para todos.
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Notas de tradução
[1] N.T. Vd. também Wikipedia.
[2] Definição de IOU: Instrumento de dívida não negociável dirigido a um credor, datado e assinado pelo mutuário. Serve como um reconhecimento informal de uma dívida de uma quantia especificada mas (dependendo da terminologia usada) pode ou não servir como prova de dívida num tribunal. Ver mais em http://www.businessdictionary.com/definition/IOU.html
[3] Empréstimo Covenant-Lite: Os empréstimos “covenant-lite” são um tipo de financiamento que é emitido com menos restrições para o mutuário e menos proteções para o mutuante. Por outro lado, os empréstimos tradicionais geralmente têm cláusulas de proteção incluídas no contrato para a segurança do mutuante, incluindo testes de manutenção financeira que medem a capacidade de serviço da dívida do mutuário. Por outro lado, os empréstimos com cláusula contratual são mais flexíveis no que diz respeito às garantias do mutuário, ao nível de rendimento e às condições de pagamento do empréstimo. Os empréstimos de covenant-lite também são popularmente referidos como empréstimos de “cov-lite” (convénio ligeiro). Vd. https://www.investopedia.com/terms/c/covenant-lite-loans.asp