BEETHOVEN – TEMPOS REVOLUCIONÁRIOS, por MICHAEL ROBERTS

(1770 – 1827)

 

Beethoven: revolutionary times, por Michael Roberts

Thenextrecession, 16 de Dezembro do 2020

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

 

É o 250º aniversário do nascimento de Ludwig Beethoven, que nasceu ou a 16 ou 17 de Dezembro de 1770; ninguém tinha a certeza, incluindo o próprio Beethoven.  Beethoven é musicalmente considerado o mais revolucionário dos compositores ‘clássicos’. E, na minha opinião, isso não foi um acidente da história porque Beethoven era um homem do seu tempo.

 

 

Nasceu na altura do que se chamou o “iluminismo”, quando o pensamento europeu se libertou de uma subserviência à religião e à monarquia e ergueu a bandeira do livre pensamento, ciência e democracia – e verificaram-se  os primeiros vislumbres de uma nova ordem económica baseada no “comércio livre e na concorrência”. Adam Smith publicou a sua obra  essencial, A Riqueza das Nações, quando Beethoven tinha seis anos de idade.  E teve lugar a guerra de independência americana, na qual os antigos colonos britânicos romperam com a monarquia britânica, com o apoio financeiro e militar da França para estabelecer uma república com o direito a voto, exercido mais uma vez neste ano.

Na minha opinião, a viagem musical de Beethoven oscilou com os altos e baixos deste tempo revolucionário que continuou ao longo da sua vida, mas particularmente com o refluxo e fluxo da revolução francesa que pôs fim à monarquia, aos direitos feudais e proclamou igualdade, liberdade e fraternidade para todos (homens).  Enquanto adolescente, Beethoven, como muitos outros jovens do centro da Europa, foi desde o início um forte apoiante da revolução.

Filho de um músico de uma família de origem flamenga, o seu pai, Johann, foi empregado pela corte do Arcebispo-Eleitor de Bona, Alemanha.  Fez a sua primeira atuação pública aos sete anos de idade e mudou-se para Viena em 1792 para estudar com Joseph Haydn, que, com Mozart (que tinha morrido no ano anterior com 35 anos), tinha moldado a tradição musical da cidade.

Viena estava sob o domínio do império absolutista dos Habsburgos.  Mas Beethoven estava envolto em ideias napoleónicas de liberdade. Tornou-se um republicano convicto e tanto nas suas cartas como nas suas conversas falava frequentemente da importância da liberdade. Ele não se importava com a realeza. A um dos seus primeiros patronos, o príncipe Karl Lichnowsky, Beethoven escreveu: “Príncipe, o que tu és, tu és por acidente de nascimento; o que eu sou, eu sou de mim mesmo”. O monarca austríaco Franz II alegadamente recusou-se a ter qualquer coisa a ver com Beethoven, com base em que havia “algo de revolucionário na sua música”. E a amizade que o compositor tinha com o grande escritor e poeta alemão, Goethe, terminou abruptamente em 1812 quando, caminhando juntos no parque, se depararam com a Imperatriz Austríaca. Goethe fez uma vénia subserviente; Beethoven, desdenhosamente, virou as costas.

Este espírito revolucionário está bem  presente em grande parte do seu trabalho.  Ele impulsionou a música para esta nova era. Reunindo o poder poético da cena literária alemã e as canções de revolução francesa, ele mudou completamente o que a música poderia ser. “Beethoven é o amigo e contemporâneo da Revolução Francesa, e manteve-se fiel a ela mesmo quando, durante a ditadura jacobina, humanitários com nervos fracos do tipo de Schiller se afastaram dela, preferindo destruir tiranos no palco teatral com a ajuda de espadas de papelão. Beethoven, esse génio plebeu, que orgulhosamente virou as costas a imperadores, príncipes e magnatas – esse é o Beethoven que amamos pelo seu otimismo inatacável, pela sua viril tristeza, pelo pathos inspirado da sua luta, e pela sua vontade de ferro que lhe permitiu agarrar o destino pela garganta”. (Igor Stravinsky). Beethoven mudou a forma como a música era composta e ouvida. A sua música não acalma, mas choca e perturba.

Penso que podemos dividir a obra musical de Beethoven em quatro períodos que correspondem aos altos e baixos económicos e sociais da sua vida. A  sua vida foi atravessada por três grandes revoluções burguesas: a industrial em Inglaterra; a política em França; e a filosófica na Alemanha.  O primeiro período da sua vida como jovem rapaz e depois como jovem adulto foi vivido durante uma viragem revolucionária na Europa; mas também  a de uma nova viragem  económica no desenvolvimento capitalista, levando ao  auge a revolução francesa com a ascensão da administração radical jacobina  em 1792 quando Beethoven tinha 22 anos de idade.

O segundo período de 1792 a 1815 foi realmente um dos retrocessos da revolução em França, pois os Jacobinos foram derrubados e o herói da defesa militar do governo revolucionário, Napoleão Bonaparte, fez-se ditador. Mas isso também significou que os exércitos de Napoleão levaram as ideias e leis da revolução francesa por toda a Europa, derrubando as monarquias reacionárias semi-feudais absolutas da Áustria, Espanha, Itália e Prússia. As suas vitórias fizeram dele um ídolo aos olhos de Beethoven.

Foi neste período que um Beethoven amadurecido compôs algumas das suas maiores obras. A sua magnífica 5ª sinfonia está repleta de referências à música da revolução. Na sua composição, Beethoven observa que a sua sinfonia expressa as palavras escritas sobre o líder revolucionário francês assassinado Jean-Paul Marat “Juramos, espada na mão, morrer pela república e pelos direitos humanos”. A sua única ópera, Fidelio, fala de uma mulher solitária que liberta o seu marido, um prisioneiro político, de uma prisão espanhola (tendo o cenário sido transferido de França por razões políticas, razões que incluíam o seu ódio ao regime em Espanha).

Um espírito revolucionário move cada andamento da Quinta. Os célebres movimentos do andamento de  abertura desta obra (ouvir) são talvez a abertura mais marcante de qualquer obra musical da história. Por coincidência, são o equivalente musical do sinal de código Morse para “V” que significa vitória, utilizado para reunir o povo francês para combater os ocupantes alemães na Segunda Guerra Mundial. “Isto não é música; é agitação política. Diz-nos: o mundo que temos não é bom. Vamos mudá-lo! Vamos!” (Nikolaus Harnancourt, maestro).

Outro famoso maestro e musicólogo, John Elliot Gardener, descobriu que todos os temas principais das sinfonias de Beethoven  são baseados  em canções revolucionárias francesas.  O “grito de alarme”, “Marchons, marchons” de “La Marseillaise”, o apelo à união  da Revolução Francesa, é ecoado nos acordes de abertura da sinfonia “Eroica”. O Quinto Concerto para Piano (“Imperador”) transpira “energia militar”. As passagens de trombeta em Fidelio ecoam as do Messias de Handel que ocorrem sob a linha vocal “a trombeta soará… e todos nós seremos mudados”.

Mas este grande período de energia musical foi cada vez mais prejudicado pela terrível e tortuosa doença de Beethoven, à medida que ele foi ficando gradualmente surdo, possivelmente com um tipo de meningite – o que afetou a sua audição. Isto começou quando ele tinha 28 anos de idade e no auge da sua fama. Embora não tenha ficado completamente surdo até aos seus últimos anos, a consciência da sua condição deteriorada tornou-o imprevisível, deprimido e até suicida.

Houve também uma deterioração da economia europeia a partir de 1805, começando com o bloqueio das conquistas da França pelo poder naval britânico após a vitória da sua marinha em Trafalgar, criando uma crescente escassez de alimentos e alimentos básicos.  E Beethoven também ficou deprimido com os acontecimentos políticos deste período.  Ele tinha dedicado a sua 3ª sinfonia a Napoleão. Mas em 1802 a opinião de Beethoven sobre Napoleão estava a começar a mudar. Numa carta a um amigo escrita nesse ano, ele escreveu indignado: “tudo está a tentar voltar à velha  rotina depois de Napoleão ter assinado a Concordata com o Papa”.  A admiração de Beethoven transformou-se finalmente em ressentimento quando Napoleão se declarou Imperador em 1804. Quando Beethoven recebeu a notícia destes acontecimentos, riscou com raiva a sua dedicação a Napoleão, na partitura da sua nova sinfonia. O manuscrito ainda existe e podemos ver que ele atacou a página com tanta violência que ela tem um buraco rasgado através dela. Dedicou então a sinfonia a um herói anónimo da revolução: foi no que se tornou a sinfonia de Eroica.

O terceiro período da vida musical de Beethoven coincidiu com um período de profunda reação e de uma queda chocante nas economias europeias.  Com a derrota de Napoleão em 1815, com as antigas monarquias restauradas na Europa, Beethoven estava em desespero, compondo pouco. Por toda a parte o pensamento progressista estava em retirada: os grandes poetas românticos da Inglaterra vitoriosa, Shelley e Byron, foram forçados ao exílio. Mary Shelley escreveu Frankenstein, um romance do desespero tanto com a superstição fanática e o racismo como com o antagonismo em relação ao crescente industrialismo científico descontrolado da  economia capitalista. Este foi o fim do romantismo e da revolução e agora era o momento para David Ricardo, mais ou menos da mesma idade de Beethoven, que em 1817 escreveu os seus Princípios da Economia Política e da Tributação, a obra definitiva da economia burguesa, um peão ao capitalismo.

Os anos 1816-19 foram terríveis para os povos da Europa, não muito diferentes deste ano da COVID em 2020.  A economia europeia caiu num Inverno permanente, tanto literal como economicamente. 1816 é conhecido como o “Ano Sem Verão” (também o Ano da Pobreza) devido a graves anomalias climáticas que fizeram com que as temperaturas na Europa caíssem para o nível mais baixo de que há registo. Houve colheitas fracassadas. Isto resultou em grandes carências alimentares. Na Alemanha, onde a crise foi muito grave. Os preços dos alimentos subiram acentuadamente em toda a Europa. Embora os motins fossem comuns em épocas de fome, os motins alimentares de 1816 e 1817 deram origem  aos mais altos níveis de violência cívica desde a Revolução Francesa. Foi a pior situação de fome generalizada na Europa continental do século XIX.

Em grande sufoco  na atmosfera reacionária de Viena, e desesperado de qualquer mudança para melhor, Beethoven escreveu: “Enquanto os austríacos tiverem a sua cerveja castanha e pequenas salsichas, nunca se revoltarão”.

No entanto, na última década de vida de Beethoven, a partir dos anos 1820, assistiu-se a um renascimento da economia europeia à medida que o modo de produção capitalista se espalhava e a indústria começava a modificar profundamente  uma Alemanha e uma Áustria maioritariamente rurais. De facto, houve a primeira recessão económica capitalista em 1825; e mais tarde, os primeiros sinais de luta proletária que acabaram por levar ao derrube da monarquia Bourbon restaurada em França em 1830 e à Lei de Reforma de 1832 em Inglaterra, permitindo aos homens adultos mais ricos o direito ao voto pela primeira vez.

E em 1824 Beethoven entregou a sua última obra-prima antes da sua morte em 1827. Beethoven há muito que tinha considerado a ideia de uma sinfonia coral e tomou como seu texto a Ode à Alegria do poeta alemão Schiller, que conhecia desde 1792 e que foi originalmente publicada em 1785, tirada de uma canção de incentivo à bebida  dos republicanos alemães. Na verdade, Schiller tinha originalmente pensado chamar à canção um Hino à Liberdade (Freiheit), mas devido à enorme pressão das forças reacionárias, substituiu a palavra Liberdade por Alegria  (Freude). Estas palavras de Schiller tornaram-se a peça central da 9ª sinfonia (que é usada pela União Europeia como o seu hino. Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Jo_-KoBiBG0

A nona sinfonia foi chamada “A Marselhesa da Humanidade”.  Beethoven revive o som de um otimismo revolucionário. É a voz de um homem que se recusa a admitir a derrota, cuja cabeça permanece erguida contra a  adversidade.

Leave a Reply