A GALIZA COMO TAREFA – aconchego – Ernesto V. Souza

Há poucas cousas mais confortáveis que uma biblioteca tranquila. Não apenas pelo desfrute e leitura dos seus ricos fundos, quanto também pela sensação de conforto, de amparo, de equilíbrio que o espaço convoca.

Gosto de bibliotecas não grandes, de academias, clubes, ateneus, centros galegos ou sociedades culturais. Dessas de cadeirões confortáveis e boas mesas, com espaço, luz e pouca gente, e mais se têm livros galegos ou portugueses doutras épocas. Essas bibliotecas são – em geral – um espaço bastante desconhecido e pouco aproveitado pelos associados. O seu usuário mais frequente, desaparecidos os tradicionais leitores de jornais e revistas em papel, são os estudantes e opositores.

Adoro as que têm uma privilegiada situação e encanto aconchegante, especialmente em Primavera e Outono, quando a luz da tarde entra pelas janelas ou as galerias principais abertas a praças ou lindas avenidas.

As prateleiras, em blocos de armários sólidos com portas de vidrais, agacham sempre um interessante património de poesia, narrativa, história, etnografia, música, arte, cultura, galega e local; e alguns pequenos tesouros bibliográficos, os mas deles doação e memória de sócios. Em tendo tempo e curiosidade aparecem velhas amizades e amores bibliográficos.

Há uns dias, numa destas, topei, entre outras cousas, com a primeira edição de Versos de alleas terras e de tempos idos (1955) de Ramon Cabanillas. Um título melancólico e empolgante, que ajusta bem aos meus ânimos e sensibilidade.

Editado pela Bibliófilos gallegos em 1955, prologado por Francisco Javier Sánchez Cantón, aparece, como volume IX da “Biblioteca de Galicia”, uma antologia pessoal de poemas clássicos e estrangeiros adaptados a galego.

Um conjunto cheio de interesse, tanto pela qualidade da escolma, quanto pelas versões galegas, paráfrases, mais que traduções, trabalhadas durante décadas a partir de diversas fontes e ricas edições e traduções anteriores que consigna, as mais das vezes em nota. Versões que evidenciam, talvez mais que nenhuma outra das suas obras, as preferências temáticas e tonais: contemplativas, sapienciais,  saudosas, ligeiras, epigramáticas e festivas; e também as influências, leituras e toda a técnica, sensibilidade e saber sobre a arte do verso do autor de Cambados.

Organiza-se a antologia em três partes: I Paráfrasis (sic) do Grego, II Paráfrasis do Latín e III Varia. São mais os poemas clássicos, porém menos os autores, que integram o volume: Safo, Anacreonte (14 poemas), Meleagro, Mosco, Baquílides e um anónimo pelos gregos; Marcial (32 poemas), Ovidio, Estácio, Túbulo, Propercio, Fedro pelos latinos; que se completam com modernos europeus: Goethe, Schiller, Heine, Niembsch, Franz Werfel, Byron, Tennyson, Longfellow, Goldsmith, James Montgomery,  John Payne,  Leigh Hunt, W. Jones, Sara Hower Adams, J. Wesley, Wilde, Cristina Rossetti, uma balada escocesa anónima, Baudelaire, Richpein, T. Gautier, J. Morèas, Soulary, Semain, Verehaeren, J. B. Guarini, J. Carducci, Bértola de Giorgi,  Gaspara Stampa; fecham uma Kasida (cássida) de Aben-Amur (sic) e um poema (Vida, pasión e groria do trigo. Axeitada arredor da versión da señora Carmela a dos Trapos, vendedora de castañas da ola, na vila cambadesa) do próprio Cabanillas.

Editado com a qualidade tipográfica e sobriedade dos bibliófilos e com o compromisso restaurador dos eruditos, estas paráfrases em galego enxebre, de um dos grandes poetas da Galiza, foram ganhando com o passar do tempo uma pátina de dignidade e um atrativo inegável. Para além definem um momento fundamental, nos limites, procuras e propostas, na elaboração e restauração da língua galega.

Gosto desses livros e dessas bibliotecas. Imagino-me a ler num espaço assim confortável ou a debater, num cadeirão sentado, a respeito de qualquer questão escassamente palpitante ou atual.

 

Da miña vida a estrada foi aberta

no instante en que fun nado.
Sei o que teño andado
o que teño de andar é cousa incerta.

Anacreonte, Oda XL

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